PEC vai privatizar praias? A decisão da Coroa portuguesa no centro da polêmica no Senado
A polêmica Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê mudar as regras do controle da costa brasileira voltou à discussão. A Comissão de Cidadania e Justiça (CCJ) do Senado incluiu a chamada PEC das Praias, na pauta desta quarta-feira (4/12).
A proposta já havia sido discutida anteriormente, quando a CCJ realizou uma audiência pública, em maio, sobre o tema. No entanto, em meio a repercussões negativas, o texto acabou ficando parado.
A polêmica se deu porque os críticos à proposta dizem que as praias serão privatizadas, algo refutado pelo relator da proposta, o senador Flávio Bolsonaro(PL-RJ).
Agora, caso seja aprovada na comissão de quarta-feira, a PEC ainda precisará passar por duas rodadas de votação no Plenário para então ir à sanção.
A proposta parte do fato de que, no Brasil, os terrenos beira-mar são públicos, considerados “áreas de marinha” e, portanto, pertencentes à União, por meio da Marinha.
A origem desse entendimento remonta ao Brasil colonial, quando a Coroa portuguesa decidiu reservar para si esses espaços em vez de incluí-los nas sesmarias distribuídas aos colonizadores.
O objetivo era tanto manter controle sobre a produção de sal quanto garantir a defesa contra potenciais invasores vindos pelo oceano.
Estudioso das monarquias portuguesa e brasileira, o pesquisador e biógrafo Paulo Rezzutti conta à BBC News Brasil que o primeiro documento que regulamentava essas áreas foi a carta régia assinada por Dom João 5º (1689-1750) em 21 de outubro de 1710.
“Ela determinava que se reservasse para a Coroa portuguesa as marinhas. As praias do litoral deveriam ficar livres de construção”, ressalta ele.
Isso teve implicância nas chamadas sesmarias, as cessões de terras feitas pelo reino português a colonizadores que vieram ocupar e explorar o Brasil.
Segundo o pesquisador, no início não era clara a dimensão dessa faixa de terra, mas aos poucos novas cartas régias foram especificando melhor, até chegarem à medida de 15 braças — equivalente a cerca de 33 metros.
“Até a independência [do Brasil] o que prevaleceu foi a orientação geral para uso e exploração dos territórios portugueses na América, como a terra, rios, áreas costeiras e florestais. A normatização geral e colonial portuguesa seguia os interesses e as conveniências nas relações de lealdade e de fidelidade aos propósitos da Monarquia e dos sucessivos reinados, em particular”, comenta à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Por esta razão as normas e a legislação referentes aos espaços coloniais formam um cipoal de interdições, proibições e permissões, nominais, específicas, localizadas e temporárias”, afirma.
“As áreas costeiras das capitanias da América portuguesa estavam sujeitas a tais flutuações. Assim como havia a concessão de posses para usufruto da terra, ocorriam também concessões para a pesca, a ocupação, a extração e coleta de produtos naturais também em ambientes aquáticos, como a passagem de rios e a navegação de cabotagem.”
Tiros, sal e peixes
Os objetivos de manter essa faixa de terra sob o comando da Coroa eram por razões de segurança e também por um controle econômico.
Em uma época em que qualquer ataque externo viria do Atlântico, foram nas praias que os portugueses ergueram fortes. E era preciso manter a área livre de construções para o caso de serem necessários disparos de canhão.
“O propósito era garantir o controle e a defesa do território, bem como assegurar a exploração e o uso estratégico dessas áreas pela Coroa”, crava o jurista Marcelo Crespo, coordenador do curso de direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
É história corrente, inclusive, a que explica que a distância das tais 15 braças tenham sido em virtude da potência dos canhões da época. Mas isso não é comprovado e pode ser mais lenda do que realidade.
“A ideia de que tinha a ver com os canhões é mais uma lenda do que um fato histórico comprovado”, afirma Crespo.
“Esse limite foi estabelecido mais com base em critérios administrativos e de gestão territorial do que em considerações militares específicas.”
Economicamente, manter essa faixa restrita à Coroa garantia um controle sobre a pesca na costa. E também na exploração do sal. “Só a Coroa poderia repassar essas áreas para quem quisesse explorar as salinas”, pontua Rezzutti.
O historiador Vitor Soares, quem mantém o podcast História em Meia Hora, lembra que “essa delimitação visava a garantir que a Coroa mantivesse o controle sobre áreas estratégicas para a defesa e a navegação, evitando que essas terras fossem apropriadas por indivíduos sem o controle estatal adequado”.
“Além dos aspectos de defesa e controle, essa demarcação tinha implicações econômicas, permitindo à Coroa controlar o uso dos recursos naturais costeiros e os pontos de comércio e pesca”, afirma Soares.
As tais quinze braças foram mantidas em 1818, por dom João 6º (1797-1826) e demarcadas apenas em 1831, no período da Regência.
Segundo Crespo, a medida de João 6º serviu principalmente “para melhorar a gestão e a arrecadação de impostos sobre essas áreas”.
“Em 1831, durante o período da Regência, houve uma tentativa de modernização e adaptação das leis às novas realidades do Brasil independente. A legislação foi ajustada para melhor adequar a administração dessas terras, garantindo que as áreas de marinha continuassem sob controle do governo, agora brasileiro, e fossem utilizadas para fins públicos e estratégicos”, ressalta o jurista.
“A legislação de 1818 também trouxe normas mais detalhadas sobre a ocupação e o uso dessas terras. O objetivo era assegurar que essas áreas estratégicas fossem administradas de maneira eficiente e que qualquer atividade realizada nelas estivesse sob o controle do governo, prevenindo abusos e garantindo a exploração considerada adequada dos recursos naturais”, avalia Soares.
“Essas mudanças refletiam a crescente preocupação com a proteção das áreas costeiras e a necessidade de um controle mais rigoroso sobre as terras de marinha.”
“A presença da corte portuguesa implicou na reacomodação das necessidades de transporte, comércio, construção e defesa do litoral brasileiro”, acrescenta Martinez.
“A definição e a exclusividade no aproveitamento das terras de marinha esteve vinculada às oportunidades para aqueles fins. Instalação de atracadouros, canais, estaleiros, armazéns, abastecimento e fontes de água, de matérias-primas, como madeiras, lenha, resinas, fibras, facilidades de circulação, construção e reparos navais.”
“Estas áreas eram selecionadas e reservadas para uso da Coroa, com duração variada, conforme a motivação e a necessidade, como o estoque para a extração e coleta de recursos apropriados para a navegação. Esta destinação pontual sobreviveu”, diz.
“Ainda hoje há espaços de usos exclusivo das forças armadas, para geração de energia, Terras Indígenas, a conservação da natureza e da biodiversidade.”
A legislação de 1831 trouxe um detalhe importante: o chamado “aforamento a particulares”, segundo o qual o poder público poderia conceder esses terrenos em regime de arrendamento de longo prazo a particulares, conforme considerarem apropriado — o chamado “refime de enfiteuses”.
“Em resumo, a lei permitiu que as câmaras municipais administrassem e utilizassem os terrenos de marinha para fins públicos, além de concedê-los a particulares mediante pagamento de uma taxa anual, regularizando assim a ocupação informal e arrecadando recursos”, diz Soares.
Professor no Museu Paulista da Universidade de São Paulo, o historiador Paulo César Garcez Marins lembra à BBC News Brasil que embora o “regime de enfiteuses” não esteja mais presente no atual Código Civil Brasileiro, “os que já existiam continuam válidos”.
“Você não pode criar outros, estabelecer novos, mas pode manter os já constituídos”, afirma.
Em 22 de fevereiro de 1868, um novo decreto acaba regulando todos os anteriores quanto às unidades de medida. “É quando as 15 braças se tornaram 33 metros, porque a unidade anterior não era mais usada”, explica Rezzutti.
De lá para cá
“A adoção do regime de propriedade privada da terra, a partir de 1850, levou ao retalhamento do território nacional em unidades de extensão e localização diversificadas. O ordenamento territorial escapou ao controle exclusivo do Estado e as áreas costeiras não foram exceção”, avalia Martinez.
“Desde, então, os conflitos e as disputas pela apropriação e uso do território no Brasil assumem proporções e violência crescentes na espoliação de áreas públicas e em conflitos sociais em torno das condições de vida e de trabalho de inúmeras contingentes populacionais regionais.”
“Terras indígenas, pescadores artesanais, marisqueiros, caiçaras, extrativismo em ecossistemas aquáticos e terrestres, como os de mangues e lagunas, são afrontados pelo turismo predatório, a pesca de arrasto, obras de infraestrutura, expansão urbana, desmatamento, lixões, poluição química, industrial e doméstica, aterramentos, vazamentos de petróleo que comprometem o saneamento ambiental marinho e costeiro”, argumenta o historiador.
Cada vez mais passou a haver a necessidade de um controle do Estado. Não mais por defesa ou valor econômico, mas para garantir a proteção.
“O interesse coletivo, o poder público, a qualidade de vida e as formações socioculturais e naturais do litoral, diariamente, são solapados por interesses privados, individuais e empresarias. Vale lembrar a emblemática atitude do presidente anterior. Ele se permitia pescar em áreas de proteção da natureza e fez anular a infração que lhe havia sido aplicada pelos órgãos federais, em benefício próprio”, critica Martinez.
No século 20, a questão das terras de marinha foi objeto de decreto do então presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), em 5 de setembro de 1946.
Na extensa lei que dispunha sobre os bens imóveis da União, ficou determinado que os terrenos de marinha eram todos aqueles a 33 metros “horizontalmente”, da “posição da linha do preamar-medido de 1831”. Por preamar se entende o nível da maré alta.
De acordo com Crespo, essa legislação, “com algumas modificações ao longo dos anos, é a base do que vigora até hoje”.
“Essa regulamentação foi mantida e adaptada ao longo dos séculos, sendo incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro após a independência do país. Atualmente, a legislação que trata das terras de marinha está incluída no Código Civil Brasileiro e em outras normas específicas que regulamentam o uso e a ocupação dessas áreas”, comenta Soares.
Ele ressalta que embora a legislação de 1946 “continue a ser a base para a regulamentação dos terrenos de marinha”, ela foi “complementada e atualizada por outras normas”, principalmente por uma lei de 1998 “que trouxe mais detalhes e modernizações sobre a administração, regularização, aforamento e alienação dos bens imóveis de domínio da União”.
O último capítulo dessa história, ao menos até a discussão levantada pela PEC das Praias, foi a Constituição de 1988, em vigor.
“Foi quando esses terrenos de marinha passaram a ser um preceito constitucional, incluídos como bens da União”, pontua Rezzutti.
“A PEC das Praias não é nada mais do que a face deste Brasil predador dos ecossistemas e das formas de vida. É um documento atual do processo de auto atribuição de privilégios às custas da população brasileira, de bens e do patrimônio público e coletivo globais”, critica Martinez.
“Em termos sócio-políticos, deveria ser tipificada como prática de racismo ambiental e, como tal, proscrita da pauta legislativa como afronta aos direitos humanos e aos princípios do Estado democrático de direito.”
O relator do texto no Senado, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), tem argumentado que a PEC não será para “privatizar” praias, mas terá como efeitos positivos, por exemplo, conceder títulos de propriedade a comunidades que já ocupam as áreas — incluindo alguns grupos de quilombolas.
“A legislação sobre as áreas de marinha tem sido constantemente revisitada para ajustar-se às mudanças sociais, econômicas e ambientais”, diz Crespo.
“Recentemente, debates sobre a ocupação irregular, preservação ambiental e uso sustentável dessas áreas têm ganhado destaque, refletindo a importância contínua de uma gestão adequada e equitativa dos espaços públicos costeiros no Brasil.”