Os caminhos que a mulher deve seguir para romper o ciclo da violência doméstica
Alessandra está em casa, na sala, onde assiste tevê. Os filhos dela – de quatro, cinco e nove anos – dormem no quarto ao lado. A campainha toca, ela se levanta, vai até a porta, vê quem é e pergunta o que ele quer. “Quero ver meus filhos” – é a resposta. O ex-marido de Alessandra, embriagado, entra pela cozinha e tudo acontece muito rápido. Ele a atinge com cinco facadas na barriga e duas nas costas. Acordado com o barulho, o filho mais velho tenta intervir e é ferido no braço. Alessandra, de 27 anos, morre na hora. O crime aconteceu em Biguaçu, na Grande Florianópolis. Só nos dois primeiros meses deste ano, foram registrados oito feminicídios em Santa Catarina.
Uma das perguntas que mais inquietam especialistas e integrantes da rede de apoio é o motivo do aparente crescimento da violência doméstica. “Talvez o que tenha aumentado seja a visibilidade desses crimes, antes sem repercussão na mídia”, observa a desembargadora Salete Sommariva, presidente do Colégio de Coordenadores da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário Brasileiro (Cocevid). “Ou talvez seja um recrudescimento dos homens diante da mobilização das mulheres”, pondera a magistrada catarinense. Diferentemente da maioria das vítimas de feminicídio, Alessandra havia registrado boletim de ocorrência contra o ex-marido duas vezes, em 2011 e um mês antes de ser morta.
“Essas tragédias se repetem com frequência”, constata o delegado Gustavo Kremer, da 6ª DP da Capital, especializada em atendimento à mulher, à criança, ao adolescente e ao idoso. Kremer aponta duas pilhas de boletins de ocorrência que ocupam sua mesa – a grande maioria relativos a ameaça e a lesão corporal. “O problema é o tamanho da demanda e o pouco efetivo”, afirma. No dia anterior à entrevista, o delegado havia instaurado 35 inquéritos policiais, todos referentes a violência doméstica contra a mulher. A orientação das autoridades às vítimas é procurar uma delegacia especializada e registrar um boletim de ocorrência. Foi o que Letícia, de 29 anos, decidiu fazer quando soube pela televisão do assassinato de Alessandra em Biguaçu. “Fiquei com medo”, diz ela, “de acontecer o mesmo comigo”. Letícia conta que apanha do marido há muito tempo, não sabe precisar quanto. “Olha aqui”, ela mostra os dois braços roxos, em seguida levanta a blusa e exibe as costas lanhadas – “ele me bate com cinta, do mesmo jeito que meu pai me batia, só que com mais força e sem nenhum motivo”. Faz uma pausa e comenta: “Mesmo que tivesse motivo, nada justifica a violência, né?”.
Antes de superar o medo e dar o primeiro passo, o desafio dessas mulheres é perceber que são vítimas e que estão em uma relação abusiva. Hoje, aliás, até de forma virtual é possível fazer denúncia de crimes. A Polícia Civil de Santa Catarina, por exemplo, tem o número (48) 98844-0011 para acolher denúncias através do WhatsApp. A polícia civil disponibiliza também, em seu site, uma delegacia virtual na qual é possível registrar boletim de ocorrência sem sair de casa. Além disso, há o 181, um disque-denúncia que funciona 24 horas por dia e garante o anonimato do denunciante – as ligações não são rastreadas. Durante a ligação, a pessoa recebe um número de protocolo para, se quiser, acompanhar o desdobramento das investigações.
Outra ferramenta que o Estado disponibiliza é a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – Ligue 180. A central funciona 24 horas por dia, todos os dias, e pode ser acionada de qualquer parte do Brasil e de mais 16 países. Embora o serviço opere como disque-denúncia e envie os relatos para a Secretaria de Segurança Pública de cada Estado, ele não aciona imediatamente a polícia. Se o caso for de emergência e a pessoa precisar da atuação da polícia militar, deve ligar para o 190.
“Ela gosta de apanhar”
Há mulheres que não vão à delegacia, não acionam a polícia civil nem a polícia militar. A cada 10 mulheres agredidas, duas não tomam nenhuma atitude com relação ao agressor. Medo de vingança, preocupação com a criação dos filhos, crença de que aquela seria a última agressão e dependência financeira são os principais motivos do silêncio. Conforme a psicóloga Anna Silva Raccioppi, há mais de uma década na polícia civil, um dos desafios é mostrar para as vítimas que violência não é coisa natural e não pode ser aceita. Mas ainda há, de maneira geral, uma tolerância social com relação à violência doméstica, e seis em cada 10 brasileiros acreditam que “se a mulher é agredida e continua com o parceiro é porque gosta de apanhar”, conforme pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Quando começou, Anna atendia apenas as camadas mais pobres da população e os casos eram quase sempre de violência física. Agora, há uma procura cada vez maior das classes média e alta e já se compreende que a violência pode ser também psicológica, moral, sexual e patrimonial. Além de mulheres agredidas por namorados, maridos ou ex-companheiros, Anna atende também mulheres vítimas dos filhos, dos irmãos, de parentes etc.
Nesse dia, durante quase uma hora, a psicóloga conversou com Letícia, ouviu o que ela tinha a dizer e lhe explicou o que são as medidas protetivas, quais os serviços disponibilizados na rede de atendimento e os caminhos que a vítima, se quiser, pode seguir. “A melhor maneira da mulher se defender”, explica Anna, “é se fortalecer psicologicamente, ter consciência da situação e dos seus direitos e ter cada vez mais acesso à informação”.
Utilizadas sem a necessidade da instauração de inquérito ou processo penal, as medidas protetivas estão em vigor desde 2006 com a Lei Maria da Penha (n. 11.340/06), considerada pela ONU como a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica. Hoje, quem descumpre as medidas protetivas pode ir para a cadeia, com pena que vai de três meses a dois anos.
“Se não existisse a possibilidade de prender esses homens que desrespeitam as medidas protetivas, o número de feminicídios em Santa Catarina seria maior”, afirma a delegada Patrícia Zimmermann D’Ávila, coordenadora das Delegacias de Polícia de Atendimento à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMIs). “O que a gente aconselha para as mulheres é procurar ajuda já no primeiro ato de violência, não deixar a coisa crescer, porque é isso que antecede as tragédias”, aconselha.
Ruptura da violência
Depois de conversar com a psicóloga, Letícia registrou a agressão sofrida num boletim de ocorrência, pediu a concessão de medidas protetivas e – como sofreu lesão corporal – fez o exame de corpo de delito no Instituto Geral de Perícias. O delegado irá remeter o pedido ao juiz e este, por lei, deverá analisar o caso em até 48 horas.
Se a violência não deixar lesões, é importante que a vítima declare, na delegacia, estar representando contra o agressor porque, sem isso, a Justiça não poderá agir. O problema é que muitas mulheres registram o boletim de ocorrência, mas não fazem essa representação.
As vítimas podem pedir as medidas protetivas de urgência na delegacia, no Ministério Público ou no fórum da comarca ¿ elas não necessitam de representação. São várias as medidas que podem ser adotadas pelo juiz. Caso seja parente da vítima – e no caso de Letícia é -, o homem poderá ser afastado do ambiente familiar e ser impedido de se aproximar até determinada distância ou de manter contato com a vítima, seus familiares e testemunhas, a fim de evitar coação ou mais agressões.
O magistrado pode proibir que o agressor frequente determinados lugares, com o intuito de resguardar a integridade física e psicológica da ofendida. Em caso de necessidade, há a possibilidade de reduzir ou suspender temporariamente a visita do agressor a seus dependentes. Além disso, a vítima e seus dependentes poderão ser encaminhados a programas de proteção.
Essas e outras medidas serão aplicadas de maneira isolada ou em conjunto, e também poderão ser substituídas por outras sempre que os direitos da mulher forem ameaçados ou violados. O agressor é avisado somente quando a mulher já está sob proteção. O Judiciário catarinense recebe, em média, 44,5 pedidos de medidas protetivas por dia.
Depois da delegacia, Letícia foi ao Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CREMF), órgão do município. O Centro oferece atendimento social, psicológico e orientação jurídica individual ou em grupo. O objetivo é promover a ruptura da situação de violência. A Casa de Passagem – cujo endereço é mantido em sigilo por motivos de segurança – é outra ponta dessa rede de apoio à mulher. Ali estão vítimas de violência que, por algum motivo, não puderam permanecer em sua própria casa ou não têm mais casa. O tempo médio de permanência é de três meses.
A rede de apoio é composta ainda pelo Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (Cedim), Defensoria Pública, Ministério Público, Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) e Centro de Referência de Assistência Social (Cras) entre outros órgãos. “Um dos nossos desafios é fortalecer ainda mais essa rede”, explica a desembargadora Sommariva, “porque essa é uma luta de todos, não só das mulheres, é uma luta necessária, importante e cada vez mais urgente”.
Imagens: Divulgação/Freepick/JusCatarina/Assessoria de Imprensa TJSC Conteúdo: Assessoria de Imprensa/NCI
Responsável: Ângelo Medeiros – Reg. Prof.: SC00445(JP)