Incêndios no Pantanal: porque o fogo ainda ameaça o ecossistema mesmo com a chegada das chuvas
Na última terça-feira (03/11), duas onças-pintadas foram resgatadas após serem vítimas de um incêndio na região da Serra do Amolar, em Mato Grosso do Sul. Uma delas morreu horas depois. Animais de outras espécies também foram resgatados na região, que é uma importante área para a preservação da fauna do Pantanal.
“A Serra do Amolar interliga diversas áreas preservadas, por isso é fundamental para os animais”, explica o veterinário Diego Viana, pesquisador do Instituto Homem Pantaneiro (IHP).
O episódio ilustra as dificuldades ainda enfrentadas no Pantanal por causa dos incêndios. Cientistas consideram que, com as chuvas recentes, o pior período do ano já passou. Mas alguns lugares ainda estão em chamas.
De janeiro a outubro, incêndios atingiram cerca de 4,1 milhões de hectares do bioma, segundo o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso corresponde a 28% do Pantanal brasileiro, segundo o Instituto SOS Pantanal.
O ano de 2020 foi o que teve mais registros de fogo no Pantanal desde o fim da década de 90, quando o monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou. De janeiro até sexta-feira (06/11), houve 21.451 focos de calor (que costumam representar incêndios). Em 2019, por exemplo, foram 10.025.
As primeiras chuvas no Pantanal, no fim de setembro, trouxeram alívio. Mas especialistas dizem que precipitações intensas, fundamentais para controlar o fogo, começaram só em meados de outubro, e ainda há incêndios preocupantes.
O que causou os incêndios atuais?
Nos últimos dias, houve incêndios na Serra do Amolar, no Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e no território indígena Guató, próximos da fronteira com a Bolívia.
Análises iniciais indicam que os focos começaram naturalmente, por causa de raios, que foram intensos com as chuvas recentes. Especialistas apontam ainda que alguns dos incêndios atuais podem ter sido causados por chamas que reacenderam em áreas que já haviam sido queimadas, principalmente nas regiões onde choveu menos.
Incêndios costumam reacender em regiões com muita vegetação acumulada, em razão do fogo de turfa, também chamado de “fogo subterrâneo”, que queima sem que as pessoas percebam.
O fogo de turfa surge por causa dos sucessivos períodos de secas e cheias nas estações da região, que criam camadas de matéria orgânica no solo. Os brigadistas costumam dizer que é como se fosse um sanduíche: uma camada de terra, outra de vegetação, outra de terra e assim por diante.
Ao longo dos anos, esse material se torna altamente inflamável. Quando essa vegetação é afetada por queimadas, o fogo pode atingir um dessas camadas mais profundas, ricas em matéria orgânica e altamente inflamáveis.
Apesar de parecer controlado à primeira vista, esse fogo pode se espalhar por baixo da camada mais superficial da terra até encontrar alguma fissura e uma vegetação mais seca para emergir.
“Os atuais focos de calor são situações naturais no Pantanal, por causa das condições climáticas adversas, com poucas chuvas em alguns pontos e muito calor. Não é um absurdo que ainda haja incêndios”, diz o tenente-coronel Dércio Santos, diretor-adjunto operacional do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso.
Mas Santos pondera que “é importante aguardar uma confirmação científica legal, após uma análise aprofundada” para confirmar se esses incêndios foram causados por raios ou pelo fogo que reacendeu.
Levantamentos na região apontaram que os incêndios no Pantanal, entre julho e outubro, foram causados pelo homem. Não havia registro de raios que poderiam justificar um fogo natural no bioma, porque não houve chuva entre junho e setembro.
Pesquisadores dizem que o fogo se propagou rapidamente principalmente por causa da seca extrema na região neste ano — a pior em quase cinco décadas — e pela demora do poder público em intervir para controlar os incêndios.
Em setembro, a Polícia Federal deu início a uma operação para apurar as origens das chamas no Pantanal. Investigações apontaram que ao menos cinco fazendeiros foram responsáveis. As apurações ainda estão em curso.
Como está sendo feito o combate ao fogo
As regiões que ainda sofrem com incêndios tiveram pouca chuva, segundo especialistas. “É uma situação preocupante. A gente precisa estar alerta. Há muita matéria seca que pode ser queimada nesses locais. Precisamos ficar atentos até que chuvas mais contundentes cheguem nesses lugares”, avalia o biólogo André Luiz Siqueira, diretor da ONG Ecoa.
Com a redução do fogo no bioma, a força-tarefa criada para combater os incêndios — que contou com apoio do Ministério da Defesa e do Corpo de Bombeiros de outros Estados — foi desmobilizada em outubro.
O combate tem sido feito pelo Corpo de Bombeiros de Mato Grosso do Sul, com apoio de aeronaves da Marinha do Brasil e de brigadistas do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama).
Santos afirma que o Corpo de Bombeiros de Mato Grosso chegou a oferecer ajuda para auxiliar o Estado vizinho. “Mas disseram que não seria necessário. No último contato, nos informaram que havia 21 servidores do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) na região. Disseram que há muitos locais inacessíveis em chamas, mas que estavam combatendo.”
O secretário de Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul, Jaime Verruck, diz que a equipe do Estado, junto com servidores do ICMBIO, são suficientes para combater os atuais incêndios. “Além disso, temos outras equipes do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso do Sul que poderão atuar lá, caso necessário”, afirma Verruck à BBC News Brasil.
No mês passado, uma medida causou preocupação. Em 21 de outubro, uma circular do PrevFogo ordenou que os Estados recolhessem todas as equipes brigadistas a partir de 0h do dia seguinte, porque não haveria mais dinheiro para continuar o trabalho.
No entanto, governos de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, onde está o Pantanal brasileiro, garantem que ainda há brigadistas do governo federal no Pantanal, mas em menor número do que durante o intenso período de incêndios.
A BBC News Brasil questionou o Ministério do Meio Ambiente sobre as medidas tomadas atualmente no Pantanal, mas não obteve respostas até a publicação da reportagem.
Fogo faz vítimas na fauna local
Para os animais que vivem na Serra do Amolar, a tranquilidade durou pouco. Especialistas dizem que houve só cerca de duas semanas com poucos incêndios em outubro. “Logo vieram os raios, que, segundo servidores do ICMBio, propagaram o fogo”, diz o pesquisador Diego Viana, que monitora a região.
Até o fim de outubro, segundo o Lasa, 216 mil hectares dos 276 mil da serra foram atingidos pelos incêndios. Mas cientistas dizem que os números atuais são maiores, com as chamas que se espalharam nos últimos dias.
Entre as vítimas do fogo, estão as duas onças-pintadas que viviam na Serra do Amolar. Os dois machos foram resgatados nas proximidades do Rio Paraguai — principal formador do Pantanal —, receberam os primeiros cuidados e foram levados pela Força Aérea Brasileira (FAB) ao Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras), do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), em Campo Grande.
Segundo o governo de Mato Grosso do Sul, os animais foram sedados, medicados, examinados e depois colocados em locais separados para se recuperar. Porém, uma das onças não resistiu e passou por exame para determinar a causa da morte, que ainda não foi concluído.
Um dos veterinários que acompanhou os animais argumentou, em entrevista à assessoria de imprensa da secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul, que o maior problema enfrentado pelos bichos é a grande quantidade de fumaça que inalam enquanto tentam fugir do incêndio.
A onça que sobreviveu está debilitada, com queimaduras nas patas e segue em observação. O animal deve passar por novos procedimentos para se recuperar dos ferimentos. Ainda não se sabe se conseguirá voltar à natureza.
Diversas iniciativas de ONGs e dos governos dos Estados do Pantanal tentam ajudar os animais da região, mas especialistas dizem que o poder público demorou para tomar essas ações.
Foram resgatados animais como antas, queixadas e cutias. “Essas unidades de conservação da Serra do Amolar são muito importantes para a região. Mas, infelizmente, muitas áreas na região foram tomadas pelo fogo”, diz Viana.
Situação só deve melhorar com chuvas intensas
A situação nas áreas ainda atingidas deve melhorar somente com chuvas intensas. “O vento que atinge a região pode tornar o combate ao fogo muito mais trabalhoso. Precisamos ficar alertas. Há muita matéria seca ainda, que pode ajudar na propagação do fogo”, diz o biólogo André Siqueira.
Há previsão de chuva para a próxima semana. Por isso, autoridades acreditam que a situação logo melhorará e que os atuais incêndios não devem evoluir para a proporção do que se viu entre julho e outubro.
Mas um temor é um possível impacto do fenômeno meteorológico La Niña, que está se desenvolvendo no Oceano Pacífico e, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), está previsto para ser de “moderado a forte” e durar até o primeiro trimestre de 2021.
O La Niña causa mudanças climáticas em diferentes partes do mundo e, no Centro-Oeste, pode deixar o clima mais seco. “Algumas pessoas falam que as previsões são péssimas por conta dos efeitos do La Niña que pode entrar em 2021. Se isso acontecer, teremos uma situação bastante desastrosa (porque o período de chuvas pode ser comprometido no bioma)”, diz Siqueira.
Diante disso, estudiosos afirmam ser essencial criar brigadas fixas para diferentes áreas do Pantanal. “Batemos nesse ponto, porque o combate prévio, quando o fogo começa, é fundamental. O melhor cenário seriam as brigadas fixas integradas aos Bombeiros, para que haja uma resposta rápida, e que haja equipamentos para isso”, diz o biólogo Gustavo Figueirôa.
Os governos dos Estados do Pantanal afirmam que devem tomar medidas para evitar que o fogo se alastre como meses atrás.
A secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso diz, em nota, que intensificará a fiscalização. “As equipes (de brigadistas) seguirão distribuídas de forma volante e descentralizada, atuando nos locais em que o monitoramento por satélite de alta resolução detectar algum tipo de degradação ambiental.”
Em Mato Grosso do Sul, o secretário Jaime Verruck afirma que também intensificará as medidas para prevenir o fogo no Pantanal. “Vamos fazer fiscalizações a partir de março, com patrulhamentos por terra, água e ar.”
Vinícius Lemos – @oviniciuslemos – BBC News Brasil em São Paulo