Biden toma posse: cerimônia será sob risco de atentado e com mais militares do que público
Aos 78 anos, quando Joe Biden for empossado como o 46º presidente dos Estados Unidos, por volta do meio-dia desta quarta, 20 de janeiro, em Washington D.C., ele viverá a realização de um sonho que perseguiu por mais de 30 anos — desde que, em 1988, concorreu às primárias presidenciais do partido democrata. Contudo, o cenário para o qual Biden olhará do pórtico do Capitólio, onde tradicionalmente acontecem as posses, é certamente diferente de qualquer coisa que ele poderia ter imaginado.
No lugar do mar de 200 mil pessoas, com bandeiras americanas e placas coloridas com seu nome, Biden verá as fardas verdes camufladas de parte do contingente de cerca de 25 mil agentes da Guarda Nacional que transformaram a capital americana em uma fortaleza, para viabilizar o evento.
Verá ainda o histórico corredor do National Mall, no qual multidões presenciaram o início dos governos de Barack Obama e de Donald Trump, com escassos mil convidados e cercado por gradis e blocos de concreto.
O espaço é o mesmo em que, há exatas duas semanas, milhares de pessoas se reuniram para acusá-lo, sem qualquer prova, de ter fraudado a eleição. O protesto, embalado pelas palavras de Donald Trump, que afirmou aos militantes que “se vocês não lutarem como o inferno, vocês não terão mais um país”, terminou na invasão do Congresso por centenas de pessoas, que tentavam impedir que os congressistas certificassem os votos do Colégio Eleitoral que deram a Biden a presidência.
O saldo foi de cinco mortos, entre eles um policial, mais de 50 agentes de segurança feridos, mais de 70 manifestantes presos e um segundo processo de impeachment aberto contra o republicano Donald Trump.
Cidade sitiada
Desde então, Washington D.C. está sob estado de emergência e nos dias que antecederam a posse foi se convertendo em uma cidade sitiada, com militares acampados em parquinhos e praças, blindados fechando quarteirões, viaturas policiais sobre as calçadas, helicópteros continuamente sobrevoando a região. O FBI, órgão federal de investigação, colocou o país sob alerta máximo há uma semana. “Protestos armados estão sendo programados para os prédios legislativos dos 50 Estados entre 16 e 20 de janeiro, e o Capitólio americano de 17 a 20 de janeiro”, afirmou o órgão em comunicado.
Na última segunda-feira, 18, o FBI alertou as forças de segurança que seguidores da teoria conspiratória QAnon estavam tentando se infiltrar na Guarda Nacional para obter acesso à área da posse de Biden. Na última terça-feira, a força de segurança afirmou que ao menos 12 agentes foram dispensados e estão sob investigação por “comportamento questionável”. Ao menos dois deles teriam “simpatia” pelos mesmos grupos extremistas envolvidos no ataque ao Capitólio há duas semanas.
Diante das circunstâncias, a prefeita da cidade, Muriel Bowser, fez um apelo aos americanos para que não viajassem à capital para a posse. “Se tenho medo de alguma coisa, é pela nossa democracia, porque temos facções muito extremistas em nosso país que estão armadas e são perigosas.” Os habitantes de Washington foram sensíveis às palavras da prefeita e as ruas da capital ficaram desertas nos últimos dias.
O nervosismo na cidade ficou evidente em dois episódios nos últimos cinco dias. O primeiro foi a prisão de um homem que portava uma arma e munições em um dos checkpoints próximos ao coração político da capital. Aparentemente, o homem não pretendia furar o perímetro de segurança, e sim havia se perdido no caminho. Ele foi colaborativo com os policiais e não teria ligações com grupos políticos.
O outro episódio foi a interrupção do ensaio para a posse e a decretação de lockdown no prédio do Capitólio, na segunda-feira, depois que um incêndio sem grandes proporções atingiu barracas de moradores de rua a quarteirões de distância.
Para o americanista Carlos Gustavo Poggio, professor de relações internacionais da FAAP, a tensão é justificável. “Eu acho que o Joe Biden é o presidente que corre mais risco de ser assassinado nos últimos anos nos EUA, em um país que tem tradição de assassinar seus presidentes. A situação nos EUA é de tal ordem, essas milícias estão assanhadas e não é um país em que seria uma surpresa matarem um presidente”, diz Poggio.
Desde o século 19, houve ao menos 30 tentativas de assassinatos de mandatários no poder, recém-saídos ou ainda por serem empossados. Em quatro delas, o criminoso conseguiu matar o presidente dos EUA. O mais recente ataque aconteceu contra o republicano Donald Reagan, em 1981. Após um discurso em D.C., Reagan tomou um tiro que perfurou seu pulmão e chegou em estado grave ao hospital, mas sobreviveu.
Agenda positiva
Em meio às tensões, Biden tem se esforçado para disputar a atenção do público para as ações inaugurais de seu governo. Ele se recusou a fazer a cerimônia de posse em um ambiente fechado e deve falar por cerca de 30 minutos para seu restrito público, em um discurso em que voltará a pedir união dos americanos — a tônica de sua campanha eleitoral — e anunciará seus primeiros atos.
Ele preparou ao menos 10 ordens executivas, número muito superior ao apresentado nos momentos inaugurais de poder de seus antecessores Trump ou Obama, por exemplo.
Empossado um dia depois de os EUA registrarem a marca de 400 mil mortes por covid-19, Biden deverá mencionar o esforço de aplicar 100 milhões de doses de vacina em seus primeiros 100 dias na Casa Branca e determinar o uso de máscaras em prédios federais e viagens interestaduais, além de recomendar aos americanos o uso da proteção em qualquer espaço público. Biden também determinará o reingresso imediato dos EUA à Organização Mundial da Saúde.
Em outro de seus temas prioritários, o democrata assinará uma ordem executiva para a formulação de um plano que possibilite aos EUA alcançar uma economia 100% baseada em energia limpa e zero emissões líquidas de gases do efeito estufa até 2050.
Biden deve ainda tratar do pacote de estímulo econômico de quase US$ 2 trilhões (equivalente ao tamanho do PIB brasileiro) que ele pretende aprovar junto ao Congresso, e apresentar um projeto para garantir acesso à cidadania americana a 11 milhões de imigrantes indocumentados que vivem hoje nos EUA. Por fim, deve revogar ordem de Trump que baniu transgêneros de servirem às Forças Armadas do país.
A posse de Biden encerra um processo eleitoral atípico em quase tudo: uma campanha de escassos comícios sob a ameaça da pandemia, um número recorde de eleitores, uma demora de mais de quatro dias de apuração de votos, um presidente em exercício que pela primeira vez na história se recusou a conceder a derrota e empreendeu uma batalha judicial em 8 Estados e na Suprema Corte, da qual saiu derrotado.
Mas o evento está longe de curar as marcas deixadas no caminho. Pela primeira vez em mais de 150 anos, o presidente de saída não passará o posto para o eleito. E o democrata terá que disputar o protagonismo dos primeiros dias na Casa Branca com o julgamento do processo de impeachment de Trump no Senado. Mas talvez seu maior desafio seja convencer os quase 40% de americanos que contestam sua chegada à Casa Branca — parte deles responsáveis pelas cenas de ataque ao Capitólio — de que é sim um presidente legitimamente eleito.
Foto: No lugar do mar de 200 mil pessoas, Biden verá as fardas verdes camufladas dos 25 mil agentes da Guarda Nacional.
BBC