A dor dos inocentes
A acusação era gravíssima e repugnante: estupro de vulnerável. O pervertido acusado teria adentrado num colégio, por volta do meio-dia, e ao ser abordado por um funcionário que achou estranha sua presença no local, pois nunca o tinha visto, aceitou a desculpa de que ele estava procurando a filha. Desconfiado, relatou o fato a outro colega de trabalho cuja suspeita logo se dissipou, pois, viu referido homem caminhar tranquilamente de mãos dadas com uma criança que concluiu ser sua filha.
Acontece que não era. Era uma inocente menina de sete anos que arrastada pela mãozinha foi conduzida até o banheiro dos funcionários daquela escola municipal, local onde a pobre e indefesa criança foi obrigada a praticar atos libidinosos para satisfazer animalesca lascívia, cuja monstruosidade não vale a pena replicar.
O colégio tinha circuito de câmeras e tudo foi filmado. As imagens foram enviadas para perícia e comparadas com fotos extraídas do Facebook do suspeito e, segundo destacou o promotor na denúncia, não havia dúvida de que ele era o autor do hediondo crime pois assim apontava a conclusão do laudo pericial que atestara a semelhança entre as imagens.
Quando o acusado me procurou com sua esposa e cunhada, não tive dúvidas em acreditar em sua inocência, não apenas pela coerência e sinceridade de sua narrativa, agregada ao fato de que ele tinha um álibi, mas por outras circunstâncias que desnudavam uma injusta acusação, daquelas que destroem famílias, reputações e vidas, pois a simples instauração de um procedimento criminal já representa uma punição para a pessoa de bem. O Estado já começa punindo para depois confirmar se de fato deveria punir.
A turbulência emocional, a angústia ocasionada pela simples investigação e eventual denúncia por vezes a ferro e fogo marca a alma da pessoa e por extensão de seus familiares de forma eterna, pois juntos passam a comungar a eucaristia da dor, que não raramente acarreta atroz desespero frente à injusta imputação que culmina com trágicos suicídios.
Marcado o dia do julgamento, seriam ouvidas naquela data a vítima, seus pais, a diretora do colégio, os dois funcionários que viram o suspeito, além das testemunhas de defesa e ao final o réu.
Todos compareceram, e a solenidade teria início com a oitiva da vítima, que agora contava com 13 anos de idade. Ela seria inquirida por uma psicóloga em outra sala e nós acompanharíamos tudo por videoconferência, com a possibilidade de fazer perguntas.
Passados 40 minutos, um funcionário informa que a psicóloga estava tendo dificuldades em conversar com a menina. Após ser intimada para depor sobre os fatos, tentara o suicídio dias antes da audiência pela depressão que lhe abatera o espírito por ter que relembrar os horrores que tinha passado. Para piorar, havia perdido o irmão mais velho num acidente de carro há poucos meses.
O juiz sugeriu que iniciássemos pela inquirição das outras testemunhas e aguardássemos para que nesse meio tempo a vítima tivesse condições de depor, o que foi aceito.
Passamos a ouvir então a primeira testemunha de acusação, a diretora do colégio. Era uma senhora por volta dos 60 anos que apresentava traços de quem um dia já foi bela, com uma postura impossível de não causar antipatia, devido à arrogância como se expressava e se apresentava: informalmente, antes de iniciar a gravação de seu depoimento, de forma orgulhosa afirmou que tinha sido a responsável pela solução do caso.
Iniciado o depoimento, após justificar sua ausência no local de trabalho no dia dos fatos, disse que tão logo tomou conhecimento viu imagens e presumiu…
Deixei ela falar. Não impugnei. Testemunha não presume nada. Ou sabe ou não sabe. Mas o instinto me dizia para deixar ela falar. A presunção é afastada de nosso ordenamento desde o Código Penal do Império, (1830) onde dispunha o Art. 36: Nenhuma presumpção, por mais vehemente que seja, dará motivo para imposição de pena (grafia do original). Os juristas da época diziam que essa regra processual vinha inserida no Código Penal para “evitar as ligeirezas do espírito humano…”
A garbosa diretora presumiu que o culpado fosse alguém da família, “ou era o pai ou alguém muito próximo”, pois pelas imagens do circuito interno do colégio o criminoso chamou a menina e ela foi, logo, já era conhecido da criança, concluiu esboçando um sorriso de satisfação. Prosseguiu dizendo que entrou no Face da mãe e viu uma foto parecida com as imagens, tendo então chamado os funcionários e eles confirmaram que era a pessoa que tinha estado no colégio.
Os funcionários, relatou ela, agora sem conseguir disfarçar o orgulho e satisfação, teriam exclamado: “É ele, como a senhora achou essa foto?”. Reafirmou diante da minha insistência que teria chamado os dois funcionários que no dia tinham visto o suspeito e eles separadamente reconheceram como sendo o da foto do Face.
Bingo. Estava explicado tudo. Como disse no início, o acusado teria sido linkado aos repugnantes atos sexuais através de fotografias suas extraídas do Face e que periciadas, segundo o Ministério Público, atestariam que “o indivíduo que aparece nas filmagens da escola é o mesmo das fotos das redes sociais”.
Até aquele momento não tinha conseguido entender como fotos do então acusado teriam caído de paraquedas no meio do processo. Não registrava antecedentes, era um homem de bem, por que cargas d’água teriam surgido as fotos numa investigação que o imputava o crime de pedofilia? E mais, se existia um laudo atestando a autoria do crime, porque a investigação foi encerrada sem nenhuma outra providência?
O crime era grave, nas imagens apareciam uma pessoa pegando pela mão em plena luz do dia no interior de um colégio uma criança de sete anos, e não se pede a prisão preventiva do suspeito quando restou identificado?
Não se requereu escuta telefônica, busca e apreensão, pois nesse tipo de crime a experiência nos revela um padrão, como, por exemplo, fotos armazenadas no computador, troca de mensagens com outros pervertidos, etc…
Nada foi feito. Por que não tentar identificar outros casos e pedir a prisão para evitar outros crimes? Afinal, estávamos diante de um caso clássico de prisão preventiva, pois segundo o promotor, existia um laudo atestando a autoria.
A incompetência deve ter sido obra da Providência Divina, caso contrário, o sofrimento do pobre acusado teria sido maior…
A presunção da testemunha era de uma bizarrice tremenda. Quantas crianças são sequestradas justamente por irem ao encontro de estranhos ao serem chamadas?
Irritado, indaguei: “Por que a senhora não disse isso na poliícia? Seu depoimento agora é inovador”. Se a diretora do colégio tivesse relatado na polícia o que disse ao juiz o desfecho teria sido outro. A mãe quando foi ouvida pela policia foi tratada como suspeita. Afinal, a foto foi extraída de seu face, logo presumiu-se que era amante do suspeito… Nem se deram ao trabalho de indagar o motivo pelo qual a foto estaria no seu face, o que seria facilmente explicado. Ela trabalhava na casa do acusado.
A diretora negou que tivesse prestado depoimento na delegacia. Indaguei de novo e, diante da nova negativa, mostrei o depoimento prestado por ela e mesmo assim ela continuava a negar, então comecei a ler e ela, por fim e a contragosto, reconheceu a veracidade procurando justificar a mentira.
Tirei então minhas presunções que no caso tinham base fática: a diretora tentava a todo custa tirar a responsabilidade do colégio, queira passar a impressão que foi um fato isolado e que na hora já tomou providências.
Indaguei se ela sabia que pelas imagens que ela entregou para a polícia o suspeito no dia antes de abordar a vítima tinha tentado fazer o mesmo com quatro outras crianças? Ela negou. Disse que não sabia nada sobre isso. Ao mostrar para ela que o laudo registrava de forma inconteste imagens onde antes de abordar a vítima outras crianças teriam sido abordadas, nada mais perguntei, aguardando pelos próximos depoimentos, nos quais dois funcionários, segundo a diretora, teriam visto o criminoso e prontamente o reconheceram pela foto sem a menor dúvida.
O reconhecimento feito na polícia tinha sido negativo, todavia, pela segurança com que a diretora fez a afirmação, fiquei pensativo se ela, na qualidade de superior hierárquica deles, teria feito com que mudassem a perspectiva.
O segurança do colégio de pronto foi indagado pelo promotor se reconhecia o acusado como a pessoa que teria sido vista no dia dos fatos narrados na denúncia.
A indagação era manifestamente abusiva e ilegal. Existem formas de se proceder um reconhecimento e decididamente aquela não era uma delas, pois a chance de reconhecer uma única pessoa apontada pelo Ministério Público como autora aumenta consideravelmente.
Ora, o Código de Processo Penal no artigo 226 traz de maneira pedagógica como deve ser realizado o reconhecimento judicial, mas novamente minha intuição impediu o protesto, pois tinha certeza de que não existia a menor possibilidade do reconhecimento ser positivo, até porque referida testemunha tinha sido categórica na fase policial, pouco após os fatos, em rechaçar a possibilidade de reconhecer o suspeito, o que foi confirmado em juízo, desmentindo de forma categórica a diretora do colégio.
Nesse meio tempo a vítima foi ouvida e reiterou o que tinha dito anteriormente: o acusado era inocente.
Olhei para o promotor e indaguei: “Acho que posso declinar de minhas testemunhas. Vamos interrogar o réu e o senhor vai pedir a absolvição?”.
Existem promotores de Justiça que não têm compromisso com o equívoco. Portam-se como verdadeiros apóstolos dos ensinamentos do Imperador Romano Marco Aurélio e não hesitam em “deixar o erro de um outro ali onde ficou”.
Outros disputam condenações para laurear sua biografia, como narra o livro de ficção “De Quando Éramos Iguais”, escrito pelo promotor de Justiça Eduardo Sens, cujo personagem central é um promotor que mesmo diante da dúvida não claudica em pedir a condenação preocupado com sua promoção na carreira e com seu índice de vitorias.
Antes que o promotor aquiescesse com minha indagação, chamei atenção para o equívoco em relação ao laudo citado na denúncia que identificava o réu. Na verdade a frase “o indivíduo que aparece nas filmagens da escola é o mesmo das fotos das redes sociais”, era uma pergunta e não uma afirmação.
Por incrível que pareça o digitador esqueceu de colocar o ponto de interrogação, mas bastava virar a página para ver a resposta negativa ao quesito. Não existia compatibilidade entre a foto e as filmagens, a altura, entre outras características atestadas pelos peritos, era diferente.
O promotor envergonhado culpou o estagiário e pediu a absolvição que foi decretada pelo magistrado em audiência.
Não tive ânimo de comemorar a vitória. Saí angustiado do fórum. Poucas vezes em minha vida me senti tão mal. O processo durou seis anos, período em que o acusado teve depressão, pensou em se matar, mas, enfim, vai conseguir virar essa triste página de sua vida e seguir em frente.
Mas e a pobre menina, cuja pureza foi torpemente violentada? No dia seguinte liguei para a mãe dela. Ofereci para a família um passeio com tudo pago ao Beto Carrero e também me propus a custear tratamento psicológico. A mãe, cuja dignidade e altivez na voz dificilmente irei esquecer, me agradeceu, e recusou.
Nos despedimos e desliguei o telefone rezando para que da próxima vez que o pedófilo atacar, pois haverá uma próxima vez, não exista uma diretora de colégio que, ávida por encontrar um culpado a fim de eximir seu empregador da reponsabilidade, comprometa a higidez da investigação.
Por: Cláudio Gastão da Rosa Filho – Advogado Criminalista
Foto: Tagjuridica