Elite sem ambição histórica

Elite sem ambição histórica

A recente decisão do presidente do Superior tribunal Federal, concedendo liminar em favor de um dos filhos do presidente da República, causa um repugnante paradoxo. Some-se a isso a intenção do presidente de indicar outro filho à embaixada dos EUA.

Minha conclusão é derradeira do ponto de vista da antropologia política brasileira: Tofoli e Bolsonaro representam a fragilidade moral e intelectual da elite dos últimos vinte anos, composta pelos que não querem e os que não sabem levar o País ao desenvolvimento. Resumem o etos de uma elite nauseabunda que não se instrui e só pensa no aqui e agora,sem ética, nem ambição histórica.

O presidente do STF concedeu liminar em favor do senador e filho do presidente da República, suspeito de praticar a “rachadinha”, quando deputado no Rio de Janeiro. A liminar proíbe o uso de informações do COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras – ou da Receita Federal, sem autorização judicial, em investigações sobre crimes financeiros contra o patrimônio público.

Que show! O paradoxo é que a decisão que protege o filho, parte da instituição criticada por eleitores do presidente da República, que jurou combater a corrupção. De gorjeta, protege envolvidos na Lava-Jato, traficantes, corruptos e até o tal João de Deus. É uma verdadeira obra de arte moral!

A estética terceiro-mundista vai além. Em meio às merecidas férias dos demais ministros,a decisão do plantonista é uma irregularidade. No seu podcast, o jurista Walter Maierovitch explica: no plantão, só se concede liminar a decisões urgentes, jamais a casos comuns como o mencionado. Por essa razão, é inconstitucional e desrespeita a Convenção de Viena, uma revolução no combate aos crimes financeiros.

Ali, 159 países passaram a cooperar oficialmente pelo uso e troca de informações financeiras. Disso resultou a criação do COAF, que jamais havia necessitado de autorização judicial, como no resto do mundo civilizado, até a decisão do plantonista. Que orgulho nacional!

A elegância da obra é retocada pela obstrução à Lava-Jato. Alicerce moral da Sociedade, a operação foi travada a pedido do filho do presidente. Ao favorece-lo, o plantonista do STF produziu o impensável: conciliou os interesses da família presidencial com os da tigrada que caíra na rede do juiz Sergio Moro, por essa exata razão conduzido ao lugar merecido.

Pensando assim, foi uma jogada genial do plantonista, digna de um exímio árbitro que concilia opositores. Irretocável! Na noite da decisão, podia-se ouvir o trincolejar das pedras de gelo sob o uísque derramado: ladrões e advogados comemoravam a infalibilidade do Estado de direitos. Que desfecho festivo à democracia!

De antropológica juridicidade, a referida obra é complementada com a disposição do presidente de nomear outro filho a embaixador nos Estados Unidos. Que família! Como um clichê da arte contemporânea, é na transgressão primitivista que percebemos a ousadia do artista. É preciso quebrar as regras da formalidade moral burguesa, baseada na contenção ao ímpeto nepotista.

O ato artístico afirma toda a rebeldia reacionária. Às favas com o comedimento de convenções morais do liberalismo democrático. A canetada aqui ganha ares de neoimpressionismo político, uma espécie de volta às coisas simples e medievais: confiança só em família.

Na Inglaterra do fim da Idade Média, o Rei Ricardo II manda matar o próprio filho, que lesou o erário, acreditando na proteção do pai. Drama shakespeariano, o ato é evidentemente condenável do ponto de vista moral. Mas rei é rei, expressão da vontade divina na Terra, dizia a própria Igreja. O que o soberano dolorosamente decidiu foi sacrificar o filho em nome da ética. Com toda a imperfeição do mundo real que as disputas de poder traduzem, somente com a ética é possível dar à política um verdadeiro toque de arte. Mais importante que perdoar o filho era dar o exemplo de retidão e impessoalidade no trato da coisa pública. O exemplo é tão extremo quanto à gravidade da situação.

Se o atual presidente da República tivesse cursado a Escola Superior de Guerra, teria lido Shakespeare, Oliveira Vianna e Alberto Torres. Dos livros, teria aprendido a beleza ao mesmo tempo moderna e conservadora que constitui o pano de fundo da política como obra de arte: filha da estética, a ética na política consiste na separação entre os negócios da família e os negócios da nação. Como o rei da Inglaterra que talvez o inspirasse, o presidente do Brasil poderia aproveitar a oportunidade histórica. Quando ela aparece, é como cavalo encilhado. E, dotados de sabedoria e coragem, os grandes homensnão a desperdiçam, oferecendo o exemplo ético que molda a imagem e define o futuro.

Ao invés disso, homens públicos como o presidente da República e o plantonista do STF são o exemplo do que há de mais vulgar em nossas elites incapazes de se distinguir. No caso do plantonista do STF, é a expressão do pusilânime, da fraqueza de caráter e da insensibilidade moral de calcular o efeito de seus atos e do exemplo que deixa à Sociedade. No caso do presidente do País, está a incapacidade de separar a família dos negócios de Estado, dando exemplo de retidão absoluta e cumprimento do que jurou fazer e não fazer. Aqui, não se trata exatamente de falta de honestidade. Trata-se de falta de intelecto, para fazer da política uma obra de arte.

E o que isso expressa de mais profundo é um misto de falta de grandeza histórica e falta de foco de quem tem a responsabilidade de zelar pelas instituições do País e conduzir o País ao desenvolvimento (assunto para artigos próximos).Nossas elites não demonstram disposição ao sacrifício, nem a ambição histórica de serem internacionalmente reconhecidas e admiradas. Em geral, só pensam no aqui e agora. E por natural que pareça, isso explica duas décadas perdidas das últimas quatro vividas. Explica também porque, com todo nosso tamanho, não merecemos o respeito de nações que não nos desprezam, mas também não nos levam a sério.

É por isso: porque nossas elitesentram e saem do poder e não nos livramos dos exemplos de pusilanimidade, egoísmo, corporativismo epatrimonialismo. Tampouco, estamos livres das tolices que somos obrigados a ver e ouvir dessa arraia-miúda que constitui a elite política nacional que a nossa democracia gerou. Jamais julgo eleitores, porque já errei mais que a maioria e todos temos esse direito. Mas o julgamento dos eleitos é uma obrigação, inda que sem a presunção da verdade, mas com o espírito da provocação republicana. É absolutamente necessário criticar as elites, quando ou não compostas pelo antônimo de seu significado, que no dicionário vai de canalha à corja.

Sobre o plantonista do STF, nada mais há a dizer da figura patética e sua gambiarra jurídica. Mas sobre o presidente, eleito pela maioria, e ao cidadão eleitor que esta maioria constitui, cabe algo. Pela teoria da ferradura, o General Golbery dizia que direita e esquerda são próximos entre si e que a maioria do brasileiro é de centro. Atualizo e afirmo que o centro é a única saída, Brasil e mundo afora. Como deputado, o atual presidente representava uma minoria extrema e barulhenta capaz de chama-lo de traidor. Como presidente, precisa deslocar-se ao centro, a fim de governar para uma maioria moderada e silenciosa. Ela não faz lobby, nem política pelas redes sociais, mas vota e sabe o que é traição de verdade.

Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner – Sociólogo

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