Há crianças que não “sabem o sabor de um chocolate”. Médico em Gaza diz que é preciso “ver para crer”

Mohammed Abu Mughaiseeb, médico palestiniano e coordenador das equipas dos Médicos Sem Fronteiras em Gaza, relata como é a situação neste momento na região e os principais desafios dos profissionais de saúde que estão no Hospital Nasser, um dos que resta no Sul da Palestina, em Khan YunisHá crianças que não “sabem o sabor de um chocolate”. Médico em Gaza diz que é preciso “ver para crer”
AFP (arquivo)

A Faixa de Gaza não recebe ajuda humanitária desde março e está a ficar sem comida, água e medicamentos. Dentro de algumas semanas, aquela organização teme que tenha de reduzir ainda mais a assistência médica e soar mais alto o alarme de emergência. O médico explica que as pessoas “só vão acreditar” no que se passa realmente em Gaza quando “virem com os próprios olhos”.

Há quanto tempo está em Gaza como médico?

Estou em Gaza há cerca de 24 anos. Estou a trabalhar com os Médicos Sem Fronteiras [MSF] há 20.

Neste momento, que trabalho está a fazer?

Eu sou o coordenador médico adjunto, estou mais a gerir a atividade clínica dos MSF na Palestina, a maioria do tempo em Gaza. No início, comecei por trabalhar em alguns hospitais. Atualmente, nós trabalhamos em diferentes locais aqui [em Gaza]. Existem os hospitais governamentais, onde nós trabalhamos e ajudamos, mas nós temos os nossos próprios hospitais que gerimos em Gaza, são hospitais de campanha.

Nesta altura, quais são os maiores problemas que o Hospital Nasser tem?

Nós estamos agora a trabalhar no Sul de Gaza, na área de Khan Yunis, no hospital Nasser, um dos que resta na região sul, na unidade de trauma. Os nossos pacientes são pessoas com traumas e queimaduras por causa da guerra. Primeiro do que tudo: a falta de capacidade porque, neste momento, estamos com uma sobrelotação de mais de 100%, temos muitos pacientes e precisamos de mais espaço. Segundo, estamos preocupados com os mantimentos. Há dois meses que há um bloqueio de toda a ajuda humanitária, incluindo o apoio aos medicamentos a Gaza e nós temos receio que em algum momento tenhamos de diminuir a nossa atividade se as fronteiras não se abrirem. Terceiro, o tipo de ferimentos são muito difíceis de tratar, recebemos pacientes queimados que precisam de um tratamento especializado.

Quais são os tipos de casos que mais recebem no hospital?

Os casos que mais atendemos são de pessoas com queimaduras de segundo e terceiro grau por causa das explosões. A maioria destes pacientes são crianças e neste tipo de casos onde os utentes precisam de estar todos os dias sedados e de intervenções cirúrgicas, precisamos por vezes de priorizá-los, porque não temos espaço. Os mantimentos são limitados, ainda temos sedativos, produtos descartáveis e analgésicos, estamos a racionar porque se a situação continuar como está, dentro de algumas semanas ou de um mês vamos ter de soar o alarme de emergência.

Em termos de serviços e equipamentos, o que é que o Hospital onde está a trabalhar neste momento tem?

Nós temos o nosso equipamento, uma capacidade para colocar mais de 70 camas. Para os pacientes temos duas salas operacionais, uma para serviços microbiológicos, um laboratório, mas ainda assim, os cuidados que as pessoas precisam são grandes. O número de feridos não para de subir todos os dias e nós Médicos Sem Fronteiras estamos a trabalhar ao máximo para conseguir ajudar, mas neste momento não há espaço para expandir.

Quantos médicos da MSF estão a trabalhar consigo neste momento?

Temos pessoal suficiente para realizar as nossas atividades, nós temos médicos, enfermeiros e paramédicos capazes de cobrir os serviços, mas há um problema: o movimento e o acesso à nossa ajuda. Alguns dos nossos trabalhadores não podem vir do Norte para o Sul. A segurança já não existe, circular em Gaza é realmente muito perigoso porque podes estar no lugar errado quando ocorre um ataque aéreo, sem qualquer aviso.   Nós temos se quiser contá-los [funcionários da MSF] mais de 300 pessoas, isto inclui pessoal de logística e administração, mas a maioria, claro, são da área da medicina cerca de 200, isto é, médicos, cirurgiões, anestesistas, enfermeiros, profissionais da higienização dos pacientes, estão todos no “chapéu”.

Gaza não recebe qualquer ajuda humanitária desde março, como é que vê esta situação?
 
O mundo consegue ver claramente que em Gaza as pessoas estão com uma grande necessidade de ter algo para comer,  não há comida nenhuma, a que há no mercado está claramente a diminuir, o que resta está a preços muito altos. Temos medo que não possamos pagar a comida para os pacientes terem o que comer. Os hospitais vão deixar de ter ajuda nas refeições. Isto está realmente a ter um impacto muito crítico no estado dos doentes porque estes precisam de comer para se curarem adequadamente e sem nutrição, sem comida, não se vão sentir bem e vamos ter casos, mais cedo ou mais tarde, de anemia e de mal nutrição, casos que vão aumentar.

Quanto é que custa a comida neste momento em Gaza? 

Só um pedaço de pão, custa agora cerca de dois dólares, quer dizer, um pedaço não é suficiente para uma criança imagine-se para quem tem uma família, o que faria? Os vegetais, o tomate, por exemplo, custa cerca de dez dólares, este preço está a ficar inacessível. A comida enlatada custa cerca de três dólares, uma lata de feijão que custava 3 cêntimos, três delas custavam 1 dólar, agora custa mais de 3. A farinha já não se consegue encontrar, um saco de 25 kg de farinha para fazer pão custa cerca de 500 dólares, são preços que nunca se vão encontrar em Tóquio ou Paris

Daquilo que vê todos os dias, como é que descreve a situação?

Se andarem por Gaza só vão ver destruição, não há nenhum pedaço de terra que não tenha sido destruído. Edifícios, estradas, escolas, universidades, tudo foi destruído. Vêm-se as pessoas a viver em tendas, milhares de pessoas a viver em acampamentos só com tendas, a juntarem-se em filas para beberem água, é um problema em toda a Gaza. Os comerciantes ficam sentados na rua a vender alguns alimentos enlatados, que são muito caros. Podem ver-se os rostos das pessoas, parecem desesperadas, deprimidas e stressadas. É uma “Terra de Terror”, vamos chamar-lhe assim.

As pessoas estão a pagar pela água?

Nem todos, a maioria não paga. A Médicos Sem Fronteiras está a distribuir água, temos algumas áreas onde estamos a fornecer água à população. Além disso, existem outras organizações que estão a fazer o mesmo, mas as necessidades são enormes. A água não é só para beber, as pessoas precisam de água para se lavar. É uma grande necessidade e uma grande escassez.

As crianças ainda brincam na rua?

São mais de 578 dias nesta guerra, não há escolas, não há universidades. As crianças brincam pelas ruas, perderam as suas vidas. Algumas delas foram criadas neste mundo, não sabem o que significa um chocolate, por exemplo, o que é um chocolate? Não sabem o que é um parque ou um parque infantil, foram criadas no meio da guerra, vendo apenas violência, ataques aéreos, bombardeamentos, mortes (…) procuram apenas por comida e por água, vivem numa barraca. A maioria das crianças tem menos de 5 anos.

Considera que o mundo está aliado ou indiferente com a situação que se vive na Faixa de Gaza?

Penso que as pessoas só vão acreditar se virem isto com os próprios olhos. Não há palavras para descrever o que está a passar aqui. Esta crise humanitária e situação catastrófica é das maiores em décadas da história, não há dúvidas. O quanto é que estas pessoas sofrem? Para onde vão? Temos aqui pessoas que já foram deslocadas dez vezes de lugar, mudaram-se e perderam tudo, perderam memórias, não têm acesso a alimentos, água. Isto vai para além de uma mensagem.

O ministro das Finanças de Israel disse na terça-feira que a Faixa de Gaza deveria ser totalmente destruída. Como é que ouviu estas declarações?

Eu não queria dizer, mas Gaza já não é um lugar para se viver. A destruição está feita, 60% dos edifícios foram totalmente demolidos, os grandes bairros foram apagados. Escolas, universidades, hospitais, clínicas, estradas, está tudo destruído. A eletricidade é pouca. Não sei o que ele quer destruir mais do que aquilo que já está destruído.

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