Las Vegas: “O plano de Trump de deportação em massa é incrivelmente grave e não foi levado suficientemente a sério”

Os americanos votam esta terça-feira para escolher quem vai ser o Presidente nos próximos quatro anos. Kamala Harris e Donald Trump estão empatados nas sondagens. O Nevada é considerado um dos estados decisivos. O que aqui assusta é o plano de deportação em massa que o republicano promete.

Os americanos votam esta terça-feira para escolher quem vai ser o Presidente nos próximos quatro anos. Kamala Harris e Donald Trump estão empatados nas sondagens. O Nevada é considerado um dos estados decisivos.  

No centro de Las Vegas, capital do Nevada, veem-se casinos e mais casinos cheios de gente como se fossem centros comerciais que o são também. Restaurantes que não são casinos, mas onde há também sempre algumas máquinas para jogar. E como se joga, também se fuma. Dá sempre a ideia de que estamos noutro tempo, menos saudável, quanto ao ar que se respira nos espaços públicos fechados. De repente, alguém ganha ao jogo num dos casinos: “Uhhhh”, um grito eufórico. Logo alguém se aproxima: “acho que o conheço de LA, também sou de LA, Los Angeles”.

A resposta do premiado com quase mil dólares nesta máquina foi: “não te conheço”! Pergunto ao bafejado pela sorte, Michael, se pensa que vai ganhar Trump ou Harris: “Sei lá dizer, acertar aqui é bem mais fácil.” Nas ruas, ouve-se um barulho constante de conversas de gente e música, vai alta a febre de consumo. Ao passar num shopping/casino, ouve-se Joy Division.

Love Will Tear Us Apart. Senão for o amor, é o jogo. Aqui, não se ouve ninguém a falar de política.

A corrida presidencial está apertada no estado do Nevada. Trump e Harris aparecem empatados em várias sondagens, sendo que outras dão uma ligeira vantagem a Donald Trump, o candidato que propõe um plano de deportação em massa de imigrantes indocumentados; o que, aqui no Nevada quer dizer, basicamente 1 em cada dez trabalhadores

Os planos de Trump de deportação em massa de imigrantes

Este é o assunto mais crucial num estado com muitos imigrantes e muitas famílias mistas etnicamente, mas também mistas entre os que estão legais no país e quem não está. Em cada lar, em cada núcleo familiar, h sempre alguém que não tem os papeis legais. Num contexto assim, os economistas dizem que um plano de deportação em massa seria catastrófico do ponto de vista económico e social.

Numa eleição em que os eleitores do Nevada votam também terça-feira para coisas tão diversas como o quadro de regentes do ensino superior, as entidades que podem ou não receber apoio do estado, uma proposta que propõe que o aborto é um direito individual e não determinado pelo estado, outro que propõe a remoção da linguagem autorizando o uso da escravidão e servidão involuntária da Constituição do Nevada, outra ainda de exceção de impostos e uma última para ser obrigatório o uso de cartão de cidadão no voto das eleições em 2026, além de tudo isto, nesta em 2024, a questão da deportação em massa é crucial.

Michael Kagan dirige a Clínica de Imigração da UNLV (Universidade de Nevada, Las Vegas) e ensina direito administrativo, e direito de imigração, sendo um dos estudiosos desta área mais citados nos EUA. É um dos estudiosos de direito de imigração mais citados nos Estados Unidos e autor de um premiado livro: The Battle to Stay in America: Immigration’s Hidden Front Line (A batalha para permanecer na América: a linha de frente oculta da imigração).

Encontramo-nos junto a uma pastelaria distante do centro e diz-me logo depois de nos cumprimentarmos: “aqui é onde as pessoas de Las Vegas vivem, não é nos casinos”.

Kagan teve um papel central na expansão dos serviços jurídicos para os imigrantes no Nevada, escreveu vários dos artigos mais citados nas áreas de direito internacional de refugiados e asilo, utilizados por tribunais em vários países.

Este académico, em entrevista exclusiva à TSF, não esconde o que considera ser a gravidade do plano de deportação em massa anunciado e prometido pelo candidato Donald Trump:Penso que aquilo que Donald Trump tem prometido ou ameaçado, é incrivelmente grave e não foi levado suficientemente a sério nestas eleições. Aqui mesmo em Las Vegas, isso pode ser devastador para a nossa comunidade. Quer dizer, poderia realmente ser um reinado de terror, mas não acho que tenha sido levado tão a sério como deveria”.

E porque não tem sido levada a sério? “Acho que a razão, bem, há muitas razões pelas quais acho que não foi levado tão a sério. Uma delas é que quase ninguém vivo hoje experimentou algo parecido. Penso que há muita ingenuidade nos Estados Unidos de que, sabe, isso não pode acontecer aqui, certo? Este é um ponto. Acho que depois da 2ª Guerra Mundial… e sabemos que houve ditadura no seu país, em Portugal mais recentemente, mas acho que havia aqui uma crença cega de que somos especiais e imunes. Não é verdade. Mas acho que essa era uma crença muito forte. Penso que também com Trump, sabe… ele é conhecido por exagerar muitas coisas e dizer muitas coisas malucas, então as pessoas nunca têm certeza do que levar a sério nele. E ele já foi presidente antes e as pessoas pensam, bem, nós sobrevivemos. Então, algumas pessoas podem dizer a si mesmas que vai ser assim outra vez. E se calhar vai. Mas não que Trump tenha sido bom para os imigrantes nos EUA, mas não foi uma deportação em massa. Mas estão aí muitos sinais de que desta vez pode ser muito mais intenso. Há sinais ou indícios de que isso poderia ser muito mais intenso, muito mais aterrorizante, e que é possível que ele fizesse uma verdadeira deportação em massa”.

Os sinais e a utilização da Guarda Nacional

Tento perceber que sinais poderão ser esses de que me fala este professor que passou 10 anos a construir programas de assistência jurídica para refugiados em todo o Médio Oriente e Ásia: “Bem, primeiro penso que aprenderam as lições dos primeiros anos da sua primeira presidência, quando ele tentou realmente tomar medidas anti-imigrantes muito mais duras do que aquelas que foi capaz de implementar. Mas fizeram-no de maneira desleixada. Perto do final da sua presidência, bem, na verdade, em 2019, ele fez algo chamado ‘expansão da remoção acelerada’, que é uma das coisas que eu esperaria agora para a deportação em massa. Permita que a polícia da imigração encontre alguém, sem ir a um juiz, que não esteja aqui há dois anos e deporte essa pessoa. Mais uma vez, sem audiência judicial. Agora, a maioria das pessoas não sabe que ele o fez porque, graças à COVID, isso nunca foi realmente realizado. Portanto foi feito só no papel, mas nós percebemos que eles estavam a aprender, estavam a melhorar. Ele também parece ter pensado nisso, está a entrar nisso. Quando lhe foi perguntado: ‘usaria os militares para prender imigrantes?’ E ele disse que não, seria a Guarda Nacional e tem sido consistente quanto a isso. Parece saber, e ele não é a pessoa mais capaz de detalhar, mas parece saber que existem razões pelas quais a Guarda Nacional é provavelmente a ferramenta mais provável do que os militares”.

As regras que protegem a população deste país de um regime militar “são muito mais flexíveis, com muito mais exceções, para a Guarda Nacional”. E há muitos exemplos de utilização da Guarda Nacional como uma espécie de apoio à aplicação da lei nacional, geralmente legítimo”. “Aqui no Nevada”, continua Kagan, “um pequeno número de soldados da Guarda Nacional foi mobilizado para ajudar na segurança das eleições de terça-feira. Está tudo bem. Este não é um uso normal da Guarda Nacional, mas, por causa disso, há potencialmente menos restrições. E o problema da Guarda Nacional é que têm capacidade para fazer coisas como montar grandes acampamento muito rapidamente”. Isto resolve um dos dilemas logísticos que uma campanha de deportação em massa teria de resolver.

Criar campos para deter pessoas antes de as deportar faz, de algum modo, lembrar a Alemanha nazi: “Podia dizer que sim, quer dizer, podia dizer que quando se faz um cerco a  pessoas e as leva, digamos, para um lugar onde vai detê-las e trancá-las… Na verdade, os nazis não inventaram o termo ‘Campos de concentração’. Creio que foram os britânicos. Mas si. Mais uma vez, por causa desta cultura, isso não pode acontecer aqui. As pessoas ficam de queixo caído e o oxigénio sai da sala se eu realmente disser que ‘isto é como um regime fascista’. E, mais uma vez, eu sei, estando a falar com alguém de Portugal, é algo que não é precisa saber, mas os americanos sim, pois têm uma compreensão limitada do que é o fascismo. Quer dizer, está muito nos noticiários agora e a ser discutido, mas quando se diz esta palavra com F, as pessoas pensam imediatamente que é Hitler e a Alemanha nazi como a única forma de fascismo. E claro que, na verdade, essa era apenas um tipo de fascismo. E não creio que Hitler seja realmente a melhor comparação. Penso que devemos olhar para os outros tipos de fascistas que temos visto na Europa e noutros lugares. Esse é, provavelmente, o modelo para Donald Trump”.

“Efeitos catastróficos aqui em Las Vegas e em todo o Nevada”

Há cerca de 200.000 imigrantes indocumentados no Nevada. Mais de 80% deles estão nos EUA há mais de dez anos. Cerca de uma em cada 10 famílias inclui um imigrante indocumentado, por isso um plano de deportação em massa “pode ser algo devastador para a economia do Nevada. E isso é algo que eu acho que está a faltar reflexão. Esta é uma comunidade mista e mista a todos os níveis, ao nível mais íntimo. Entra numa loja e a pessoa de quem está ao lado ou compra algo talvez a um imigrante indocumentado. As pessoas nem sequer sabem com que frequência, todos os dias, interagem com imigrantes indocumentados, a todos os níveis. Sou professor de Direito. Existem estudantes de Direito indocumentados. São estudantes indocumentados na universidade. Muitos dos meus alunos que são cidadãos, os seus pais não têm documentos”. É em todo o lado. No passado existiram os jornalistas de TV, estrelas do meio televisivo, indocumentados. Foi o caso de José António Vargas, jornalista, cineasta e ativista de imigração, vencedor do Prémio Pulitzer, que se declarou indocumentado num ensaio de 2011 para a New York Times Magazine.

Quando as pessoas afirmam que um plano de deportação ‘só’ afetará a comunidade de imigrantes indocumentados, explica Michael Kagan, “isso não existe. É como se estivesse a falar sobre a comunidade de canhotos? Não, os canhotos estão misturados com o resto de nós. E se atacar todos os canhotos, está a atacar toda a nossa comunidade e é assim que seria qualquer ataque generalizado aos imigrantes num lugar como Las Vegas”.

Há estimativas de que o tipo de deportação em massa de que Trump fala, poderia ter um impacto na economia dos EUA de uma forma semelhante à Grande Recessão de há uma década, especialmente em indústrias que “são muito grandes aqui., hotelaria, restaurantes, construção. Muitas destas indústrias não podem funcionar especificamente sem imigrantes indocumentados”. Mas, afirma o académico da UNLV, “o impacto social é simplesmente insondável. Quer dizer, por causa do meu trabalho, infelizmente vi famílias passarem pela deportação de alguém. E digo sempre isto, é o mais próximo, se ainda não presenciou, o mais próximo é ver uma família que de repente teve alguém a morrer, porque é um lugar vazio na mesa da cozinha e uma ausência repentina. Os efeitos disso são difíceis de medir”.

Além do impacto que tal medida, caso Trump seja eleito e a leve por diante, como promete reiteradamente para jubilo dos seus apoiantes, iria trazer também para o sistema judicial com os tribunais já sobrecarregados. Kagan corrobora: “Os tribunais de imigração estão incrivelmente cheios aqui em Las Vegas. Neste momento estão a realizar audiências para casos em 2027. Portanto, este tipo de atraso impediria uma deportação em massa. É por isso que coisas como a remoção acelerada que mencionei pode ser o expediente a utilizar. O próprio Trump tem falado em usar a Lei de Inimigos Alienígenas ou Estrangeiros. Para tentar evitar ir a tribunal, pois haveria contestações nos tribunais sobre se isto é legal e isso colocaria ainda mais pressão sobre o sistema judicial americano, que já está a tornar-se muito politizado. E já vimos muitas preocupações sobre se o poder judicial americano é assim tão independente como precisamos que seja”.

O problema será apenas Donald Trump? Ou, mesmo que Donald Trump perca as eleições de terça-feira, estes planos podem estar no plano da agenda política de médio prazo de grande parte do Partido Republicano? “Bem, se Donald Trump perder na terça-feira, não creio que possamos assumir que Donald Trump que ele não será o nomeado em 2028. Mas mesmo que ele desaparecesse eventualmente, não esperaria que isso desaparecesse do partido republicano. A política em torno da imigração neste momento é tão hostil para os imigrantes como nunca foi nos últimos 30 anos nos Estados Unidos. E isso é algo que os políticos vão perceber. Donald Trump foi o veículo e o catalisador para uma forma particularmente virulenta de política anti-imigrante. Mas sim, JD Vance, que é muito mais novo e muitos outros perceberam isso e disseram coisas que, de certa forma, são ainda mais cruéis.”

Sobre terça-feira, dias da eleição, Michael Kagan não faz apostas:  Não, é um cara-ou-coroa e bem-vindo a Las Vegas! É isso que vamos fazer por todo o país em relação a uma enorme escolha. Será como uma volta na roleta aqui”.

Juan não tem documentos e não quer dar entrevista. Já trabalhou em casinos, hoje está na rua a tocar tachos e panelas e a encantar quem por ele passa na Las Vegas Boulevard.

TSF

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