“Mudança Climática”: Brasil aumenta incentivo a combustíveis fósseis na contramão de metas por clima
Os incentivos dados pelo Brasil a combustíveis fósseis em 2020 superaram os gastos do governo federal com Educação, conforme os dados compilados pelo Instituto de Estudos Econômicos (Inesc), organização sem fins lucrativos que monitora o orçamento público sob a perspectiva dos direitos humanos.
Somando subsídios diretos e indiretos, o total dado como incentivo a combustíveis fósseis foi de R$ 123,9 bilhões, 25% mais do que em 2019, enquanto o orçamento da União para Educação no período foi de R$ 113,2 bilhões, ainda de acordo com o estudo, que será divulgado nesta segunda-feira (08/11).
“O Brasil trata pouco desse assunto [combustíveis fósseis]. O tema das mudanças climáticas está muito restrito à discussão sobre florestas, mas, dentro desse desafio, que é gigantesco, também é preciso olhar para essas outras fontes de emissão [de gases poluentes]”, diz a responsável técnica pelo estudo, Alessandra Cardoso.
Ela chama atenção não apenas para o valor elevado dos subsídios, que acabam incentivando a indústria do petróleo em um momento em que mundo discute a emergência de se reduzir as emissões de gases de efeito estufa, mas para o fato de que muitos desses recursos não aparecem em dados divulgados pela Receita Federal ou pelo Ministério da Economia.
“Cerca de 89% do total, R$ 110 bilhões, estão na categoria ‘outras renúncias’, que não aparecem em lugar nenhum — no Orçamento, nos dados da Receita. Ficam no limbo do debate público.”
– Gastos tributários (R$ 3,3 bilhões, 3% do total): nome técnico dado para os subsídios, na terminologia usada pela Receita Federal; inclui incentivos que beneficiam termelétricas e setores como o de gás natural, por exemplo.
– Gastos diretos (R$ 10,8 bilhões, 8% do total): são transferências diretas de recursos públicos, feitas por meio de mecanismos como a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que custeia anualmente um volume de compra mínimo de produtores de carvão.
– Outras renúncias (R$ 110,57 bilhões, 89% do total): não são entendidas pela Receita Federal como gastos tributários, mas são vistos como subsídios por entidades como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como é o caso do Repetro, programa de incentivo à indústria do petróleo que gerou perda de arrecadação de R$ 50 bilhões em 2020, segundo os cálculos do Inesc.
Incentivos do Repetro
Na avaliação de Cardoso, falta transparência sobre o custo do Repetro, cujos dados foram levantados pelo Inesc por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Vigente desde 1999, o Regime Aduaneiro Especial de Exportação e de Importação de Bens Destinados às Atividades de Pesquisa e de Lavra das Jazidas de Petróleo e de Gás Natural (Repetro) inicialmente reduzia ou zerava uma série de impostos sobre a importação de máquinas, equipamentos e insumos usados na cadeia do petróleo. Em 2017, ele foi ampliado, passando a desonerar também produtos comprados no mercado interno, e renovado até 2040. Na prática, o regime diminui os custos de produção do setor de óleo e gás.
“Ele foi pensado em um contexto muito diferente. Em 20 anos, o cenário mudou radicalmente. Hoje, a estrutura tributária é permeada por interesses muito fortes. A extensão e ampliação do Repetro teve como pano de fundo um lobby muito forte do setor e praticamente nenhum debate público”, opina Alessandra.
Em sua avaliação, se do ponto de vista ambiental o incentivo pode ser considerado anacrônico, do ponto de vista estritamente econômico ele também é questionável, já que diversos projetos, especialmente aqueles ligados aos campos do Pré-Sal — descoberto em 2007 e com uma produtividade alta — seriam rentáveis mesmo sem incentivos.
O estudo do Inesc destaca ainda que, apesar de a Receita Federal não entender as renúncias fiscais do regime como gastos tributários, a OCDE os considera subsídios a combustíveis fósseis. O Repetro foi citado em um relatório recente da organização, de julho de 2021, em que se avaliava o progresso do Brasil na implementação de suas recomendações de revisão de performance ambiental.
Brasil na OCDE
O documento destaca que, desde 1972, a OCDE promove o princípio do poluidor-pagador, por meio do qual os custos da degradação ambiental devem recair sobre as atividades responsáveis pelos danos. Nesse sentido, a recomendação aos países aderentes é de que “não concedam auxílio aos poluidores (…) por meio de subsídios, vantagens fiscais ou outras medidas, exceto em períodos transitórios bem definidos”.
Há anos o Brasil tenta se tornar membro permanente da OCDE, vista como uma espécie de “selo de qualidade” que poderia atrair investidores e facilitar a costura de acordos de cooperação internacionais. No início deste mês, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a dizer que as “preocupações ambientais” estão entre os assuntos que têm dificultado a entrada do país na organização.
À reportagem, a Receita disse que o Repetro não deve ser visto apenas como um gasto tributário, e defende que o programa traz benefícios de longo prazo para a economia brasileira.
Em nota, a Receita disse entender “que não é possível, dado o desenho do nosso sistema tributário de referência, considerar o Repetro (e outros regimes aduaneiros especiais) como um gasto tributário. Isso se deve ao fato de utilizarmos em nossa classificação uma visão de efeito de longo prazo”.
“Apesar de ser possível estimar-se, pela mera aplicação das alíquotas de PIS, Cofins, IPI e II sobre os valores importados uma renúncia potencial, esse cálculo superestima sobremaneira a renúncia, uma vez que não leva em consideração a possibilidade de que, em situações normais, o contribuinte gera crédito sobre os insumos. Apesar de, olhando pelo lado da importação, conseguirmos chegar a números similares aos do relatório da OCDE, o que faltou no relatório foi mostrar como seria o recolhimento dos tributos por uma empresa não beneficiária do Repetro, levando em conta o lado do creditamento e seu efeito de longo prazo”, conclui a nota.
Procurado, o Ministério da Economia não se manifestou.
BBC