Sobre a redução da maioridade penal: educação, leis ou mudança de procedimentos?
O Jornal O Globo publicou em 14/01/2019 matéria em que divulga dados de pesquisa de Opinião do Data Folha sobre o tema deste artigo. Na ocasião, 84% dos 2077 entrevistados em 130 municípios. Trata-se de tema que já discuti bastante na varanda do meu Prezado Oscar Conceição Jr., a mente mais lúcida do Planalto Norte Catarinense (o único defeito é que continua torcendo pelo time que matou sete adolescentes).
Quanto ao tema da maioridade, vem sendo “empurrado com a barriga”, porque não existe solução “ótima”. Os dados da pesquisa estão disponíveis em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/14/84-dos-brasileiros-sao-favoraveis-a-reducao-da-maioridade-penal-de-18-para-16-anos-diz-datafolha.ghtml.
A redução da maioridade penal estava na agenda dos grandes temas políticos do País em 2015. Dos 27 deputados da comissão especial que aprovou a proposta que foi à Câmara, 75% eram favoráveis à redução. Em São Paulo, segundo Carta Capital, de dezembro de 2013, o Vox Populi indicava 89% da população a favor, enquanto uma pesquisa da Associação de Magistrados do Brasil – AMB – revelava que 61% dos magistrados também o eram. Educação, leis e sistema prisional não têm resolvido o problema da criminalidade, que é complexo e ainda requer estudos estatísticos e comparativos. A enfrentá-lo, precisamos de liderança e inovação. Além disso, não se trata só de reconhecer as causas sociais da violência, mas de garantir segurança à população.
Do ponto de vista moral, é plenamente aceitável que uma pessoa de 16 anos seja punida com prisão por um crime hediondo e tem razão os que afirmam que nessa idade há discernimento suficiente para decidir entre o certo e o errado. Tentar relativizar isso têm sido um sinal de fraqueza civilizatória. Isso nos conduz a sugerir que o ECA, principal instituição em defesa dos direitos dos jovens brasileiros, incluindo os delinquentes, precisa ser revisto. É preciso reconhecer que a mesma lei que conscientiza os beneficiados de seus direitos, os habilita a usá-la em favor da sua “vitimização” e impunidade.
Jovens e adultos infratores agem motivados por alguns fatores, e suas ações, bem ou mal, são calculadas. Estou sugerindo que os infratores pensam nas consequências de suas ações, seja aos outros, seja a si mesmos. Em relação aos outros, em geral, pouco se importam. Mas em relação a si próprios, tem noção sobre as consequências. Se a punição for menor que o risco ou a recompensa (“inimputabilidade” legal, recompensa material ou moral), a tendência de sua decisão será correspondente. Trocando em miúdos: menor a punição, maior o estímulo à infração. Passando a régua: não há civilização sem regras rígidas, baseadas na recompensa à obediência consciente de leis em respeito ao próximo, e na punição severa aos infratores.
Do ponto de vista operacional, tem razão os que acusam o sistema prisional de perverso. Está falido e não cumpre suas tarefas constitucionais. E, se na política importa o resultado, prender adolescentes no presídio é, a favor ou contra suas vontades, dar-lhes uma bolsa na universidade do crime. Muito pior se não forem assassinos ou estupradores, mas isso todo mundo já sabe. Não devem restar dúvidas de que infratores de 16 a 21 anos, inda que criminosos, não podem conviver com adultos criminosos. Embora tenham discernimento entre o certo e o errado aos 15, não teriam resistência psicológica, nem moral, aliciados por criminosos de 30. E, se o sistema não funciona aos maiores, é lógico que não funcionará com os menores. Trocando em miúdos: adolescente na cadeia não significa amadurecimento moral e sim criminal. Passando a régua: Só lhes faltaria a certificação estatal de “criminoso graduado”.
Por essa razão, a lei prevê e faz cumprir o sistema sócio educativo. E funciona? Segundo dados do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, é de 20% a reincidência nesse sistema, enquanto no sistema prisional é de 60%. Mas as informações são desencontradas, senão, veja-se a discrepância: a Carta Capital informa, com dados do CNJ (quer mais insuspeito?), que a reincidência entre os adolescentes é de 43%, mais que o dobro informado pelo CONANDA, enquanto dos adultos é de 70% (fonte: DMF/CNJ). Afinal, quem fala sério? Seja qual for a resposta, as discrepâncias revelam que os argumentos estão contaminados por parcialidade, sentimentos e interesses inconfessados.
A solução, dizem os mais vagos, é pela educação (e pela melhoria de vida etc.). Ouve-se isso de intelectuais, políticos, delegados e juízes. Mas ninguém parece se perguntar como que o aumento da escolaridade e a melhoria de vida têm vindo acompanhados do aumento do crime. No Brasil, os índices de violência aumentaram tanto quanto os índices de escolaridade e qualidade de vida. Como entender esse fenômeno, que parece transformar em mito os dogmas do bem-estar e a “sociologização” do crime? Coloquemo-nos no lugar do professor humilhado por um delinquente “inimputável” que a resposta começa a surgir. Plausível seria que algum honesto parlamentar sugerisse incluir qualquer ofensa à autoridade professoral como crime hediondo.
Contudo, considerando a educação um fato social universal e de primeira grandeza, não se trata, essencialmente, da sua falência, nem das leis. O modelo de educação em voga é que não responde aos sintomas de anomia social que vivemos em relação à violência. Nessa direção, é necessário reconhecer que o atual sistema educacional desestimula o senso de responsabilidade e a meritocracia em favor de um igualitarismo utópico. É esse, de fundo, o panorama da desumanização dos indivíduos, quando uma visão lúdica e boas intenções inibem o que temos de mais humano, isto é, a responsabilização sobre nossos atos. E de boas intenções, dizem, o inferno está cheio.
Por extensão, e por conta de leis irrealistas e desavisadamente antirrepublicanas, escola e comunidade são destituídos de sua autoridade moral, obrigadas a conviver com a indisciplina, o desrespeito à autoridade professoral, a violência e a humilhação promovida por delinquentes que ao invés da punição recebem a proteção jurídica, degenerando os pilares da civilização e edificando o império da mediocridade e da vergonha. Nessa direção, não há o que tergiversar: esse modelo educacional faliu e brasileiros jogamos fora a chance de nos tornar a decantada potência econômica que poderíamos ser. Esqueça-se. Resta, novamente, à classe média cuidar da educação privada de seus filhos, pagando duas vezes a conta e ainda acusada de alienada e egoísta.
Quanto às leis, assim como o modelo educacional, disseminam as premissas do Estado de direito e bem-estar, presas a uma concepção rousseauniana de que o ser humano é bom por natureza e é a Sociedade que o corrompe. Mas que Sociedade, afinal? Ah, me permitam revelar esse velho segredo: a Sociedade capitalista, é claro. Fundada na propriedade privada, é “origem de toda a desigualdade social”. Responsável pela privação dos bens inalcançáveis, é o “sistema” que conduz ao crime. A concordar com esse raciocínio infantil na cabeça de pródigos intelectuais e paladinos da lei, resta agradecer ao divino que a maioria dos injustiçados seja tão imbecil e covarde que não se rebele contra a Sociedade. Na cultura jurídica do Estado de bem-estar, a consequência é a mesma que na educação, a saber, a desumanização do infrator. Tratando-o como vítima, culpa-se a Sociedade, e retira-se dele a responsabilização pelos seus atos.
Se tivéssemos aqui o tempo do Mundo, nos daríamos ao luxo de sugerir que, no longo prazo, somente uma mudança conceitual na educação e nas leis nos tira dessa anomia social em que nos metemos. E, pra ser honesto, estamos só no início dela, pela simples razão de que os agentes ideológicos e políticos responsáveis pela manutenção desse estado de coisas ainda são jovens e farão prevalecer por muito suas ideias e influências. Paradoxalmente, em nome da justiça e na defesa das “vítimas do sistema”, suas posições ainda serão a causa de muita brutalidade e pouca produtividade. Isso não nos impede de insistir na necessidade de uma mudança conceitual na educação e nas leis: a substituição de concepções filosóficas oriundas de leituras anacrônicas de Rousseau, em favor da disseminação de valores liberais e republicanos, na tradição de John Locke, a fim de concertar o curso civilizatório. Mas isso é coisa pra 20 anos e trabalho de uma elite emergente ainda imberbe.
Diante de um problema tão complexo, é evidente que as soluções não são fáceis. Não obstante, com os recursos cognitivos e institucionais, seria uma covardia nacional não construir novos procedimentos, em resposta, digo, em respeito à vontade geral. Nessa direção, o método exige reconhecer os objetivos, o estado das coisas e as alternativas. O projeto de redução da maioridade penal será votado. Trata-se de aprová-lo ou não. A fim de que o debate seja socialmente útil, precisamos lembrar que o objetivo geral deve ser a diminuição da violência e a proteção dos honestos. Na sequência, os principais objetivos são a ressocialização dos adolescentes infratores, a eficiência do gasto público e, em resposta ao clamor geral, a punição exemplar.
Em relação ao objetivo geral, parece fundamental que seja claramente aceito e não sucumba às ideologias, ao corporativismo e às circunstâncias. Posições sectárias ou idílicas, preconceituosas em relação aos pobres ou à classe média são praticamente inúteis, ou na maioria das vezes prejudiciais.[1]Cidadãos honestos não tem a obrigação cívica de tolerar a delinquência, nem devemos vitimizar o delinquente às custas de quem cumpre a lei. Somente depois de assumir essa posição concernente ao direito civil, primeiro pilar do Estado de direito, é que deveríamos socializar as causas da violência. Entre o buonsavagede Rousseau e o hominis lúpus hominide Hobbes, evoquemos o homem autônomo de Locke e Kant. É justo nessa perspectiva que sugerimos a mudança conceitual na educação e nas leis, mas explicá-lo é um capítulo à parte.
Quanto às circunstâncias, naturalmente é inevitável reconhecer que os problemas do sistema prisional (más condições e superlotação) devem ser considerados. Não podem, porém, ser a explicação ou justificativa a impedir mudanças de procedimento, sob pena de ignorar a regra de número um na política, qual seja, a de que os meios devem se submeter às finalidades, desde que, evidentemente, estas sejam republicanas.
Por fim, é desejável avaliar alternativas emudanças de procedimento, considerando os principais objetivos subsequentes, que são a ressocialização e a eficiência no gasto do recurso público, mas também a punição exemplar. A ressocialização tem o intuito humanitário e o interesse produtivo que une gregos e troianos. Toda sociedade precisa da regeneração moral e da força de trabalho de seus jovens. E, se os outros dois objetivos não são tão unânimes, qualquer pessoa de bom senso há de concordar com o uso racional do dinheiro público. E a mesma sensatez vale para admitir que a punição exemplar diminui a reincidência e, fundamentalmente, atende ao clamor da vontade geral, inconformada com a impunidade, que penaliza os bons e incentiva os maus.
Mas, antes que alguém se sinta sem resposta, resumamos o que se pode admitir como punição à delinquência juvenil: se o coitado furtou a própria mãe, agrediu uma senhora, ameaçou alguém com arma ou desrespeitou uma professora, vai varrer a calçada pública, tirar o mato dos canteiros, carpir um lote (com protetor solar, é claro). Vai limpar a sala de aula, o banheiro da escola, juntar o lixo das ruas. Uma educação sem noção de trabalho e respeito à Sociedade que trabalha duro, vale absolutamente nada além de levar o País à rabeira do processo civilizatório. Um dos fatores que explicam os avanços do processo civilizatório é o reconhecimento das causas de certos recuos. Erramos e pronto. Corrijamos, capazes de superar os corporativismos. São as elites, políticas e intelectuais que, cientes dos erros e das correções necessárias, renovam e inovam, para que a vida siga o bom curso. Não há, insista-se, não há desenvolvimento sem isso.
Nessa perspectiva, temos que nos debruçar sobre temas inovadores na área da segurança pública. Já em 2007, o Senado discutia uma proposta de descentralização da legislação penal no País, mas que emperrava numa concepção centralizadora da unidade federativa e não se falou mais nisso. Alem disso, é urgente considerar as experiências de terceirização do sistema prisional, estendendo a reflexão e os conhecimentos ao sistema sócio educativo. Admitindo que as condições do sistema prisional são inóspitas, é honesto reconhecer a incapacidade estatal de operacionalizá-lo eficientemente, sabendo que é aí que a porca torce o rabo. Preconceitos, ideologias, interesses corporativos e ignorância somam-se na defesa do Estado que, em substituição à condenação bicentenária sobre a propriedade privada, deveria começar a ser encarado como a origem de muitos males republicanos.
Já existem informações estatísticas que nos permitam estudos comparativos sobre as experiências desse gênero. É preciso intensificar os estudos, comparando-as entre si e com o funcionamento do serviço estatal. Nem todas as conclusões sobre as experiências vão na mesma direção. Ainda assim, países como Inglaterra, França, EUA, Austrália, África do Sul, Canadá, Bélgica, Chile e também o Brasil já apresentam resultados que todos nós e nossos parlamentares precisamos conhecer. Embora sejam dados do sistema prisional (de adultos) esses estudos permitem respostas às perguntas e aos genuínos objetivos contidos na proposta de redução da maioridade penal, seja em relação à proteção dos cidadãos honestos, seja em relação à ressocialização, como em relação aos gastos públicos.
Se pudéssemos contar com um Congresso maduro, comandado por lideranças de firmes convicções conceituais, inclusive sobre o papel do Estado, ele poderia assumir a defesa de uma tal bandeira, contando com o apoio da população, que espera que seus parlamentares a representem. É o que espera a trabalhadora doméstica que, humilhada e desconsolada, vai a pé do trabalho pra casa, depois de entregar o dinheiro do ônibus a um delinquente imprestável que acabou de ameaçá-la com uma arma. É o que também espera a família cuja filha, educada para ter um futuro brilhante, foi assassinada na frente de casa por dois zumbis, do mesmo tipo que incendeiam ônibus, comandados por bandidos de dentro de presídios, humilhando os profissionais da segurança pública e degenerando a civilização cristã ocidental.
Reconheçamos que o fato é ainda mais complexo do que ora exposto. Não mencionamos aqui o importante problema das drogas, de mãos em mãos entre delinquentes e criminosos. É outro capítulo à parte a ser incluído na interpretação do tema, mas não muda uma palavra do que se disse até aqui. Não obstante, longe da presunção da verdade, do conhecimento amplo ou especializado, está o propósito livre e democrático da provocação ao debate de interesse público. Não é fácil abrir mão de nossas convicções ideológicas e passionais, suportar de forma empática a divergência opinativa e buscar acordos revisionistas. Mas é necessário despertar a vontade política e o compromisso republicano a fim de resolver algo inadiável, ao invés de nos comportarmos como avestruzes diante do problema.
[1] Nem todo preconceito é necessariamente inútil, mas nesse caso o preconceito classista, de ambos os lados, não ajuda.
- Nota: excepcionalmente, atualizamos artigo de 2015, publicado em Correio do Norte, em substituição ao articulista Dr. Wellington Lima Amorim, da UFRGS, que volta a publicar em Setembro.
Dr. Walter Marcos KnaeselBirkner/Sociólogo