Sobre a reforma da previdência

Sobre a reforma da previdência

A Previdência é um problema matemático e moral. Comparadas as contribuições de um trabalhador e o que recebe de aposentadoria, constatamos que a Sociedade paga a maior parte. Normal. A questão é saber quem paga menos nesse contexto de farinha pouca, meu pirão primeiro. E é aqui que o Brasil se desnuda na República de corporações penduradas num Estado que nasceu para assegurar privilégios. A geração que admite a reforma não terá bom futuro com essa desigualdade que impede o Brasil de crescer. E se os militares não dão o exemplo, cai a reserva moral e a reforma será matematicamente injusta e desmoralizante, revelando a pequenez das elites e sua velha origem.

A matemática

Objetivamente, a questão é tão clara quantas as límpidas aguas em que os netos de juízes e legisladores federais se banham nas férias escolares. O civilizatório envelhecimento populacional faz aumentar, ano a ano, o custo das pensões e aposentadorias. Em 2018, o déficit com os 35 milhões de beneficiados no INSS foi de 185 bi, mas precisa ser somado aos R$ 100 bi de déficit com um milhão benefícios do setor público, totalizando 285 bi. Se nada for feito, em poucos anos a País se inviabiliza e não adianta espernear: se o governo cobrasse os R$ 600 bi de dívidas de grandes empresas, isso taparia o buraco por dois anos e o déficit recomeçaria no dia seguinte.

            Nesse sentido, a pergunta é muito simples: se não faremos agora, quando faremos? Porque a população continuará envelhecendo, nosso bônus demográfico (população jovem apta ao trabalho) irresponsavelmente desperdiçado e não teremos trabalhadores suficientes para sustentar os aposentados. Em todo o mundo a previdência é um assunto permanente, mas aqui os críticos afirmam que ela é desnecessária. Como Eu queria que isso fosse verdade. Se fosse, porque FHC, Lula, Dilma e Temer estiveram comprometidos com ela? Eram todos neoliberais? Se esse é um problema nas ricas Alemanha e França, no Japão e na China, por que estaríamos livres dele aqui? Alguém me explica isso!

            Nos advertem ainda os críticos da reforma que nosso sistema é composto de outras contribuições, como a poderosa Contribuição ao Financiamento da Seguridade Social – Cofins, mas que até 30% são desvinculados para outros fins. Que outros fins? Se os sucessivos governos não estiverem mentindo, e é fácil verificar, esses recursos vão religiosamente para saúde, assistência social e seguro-desemprego. Ora, fazer o que diante desse drama? Tirar da saúde que, segundo a TV Senado, recebeu 80% de seus recursos daCofins, de um orçamento de R$ 131 bilhões em 2018. Evidentemente não é a solução e, infelizmente, não parece haver saída. A reforma é uma questão matemática.

Um pequeno exercício numérico, amparado em dados, permite entender como é simples e universal a questão da aposentadoria. Imaginemos dois trabalhadores brasileiros, um da iniciativa privada e outro do setor público. Imaginemos que tenham começado a contribuir em 1982 e, sem interrupção, os sortudos se aposentaram em 2017, aos 60 – acima da idade média de aposentadoria do brasileiro – e viverão até os 80 anos, atual expectativa de vida em SC – que era de 67 anos em 1980.  Que cada um tenha contribuído sobre R$ 10 mil/mês, valores atualizados, durante os 35 anos. Agora, façamos a comparação entre os regimes do INSS e dos servidores públicos no quadro abaixo:

Item Iniciativa privada Serviço público
Salário 10.000,00 10.000,00
Anos de contribuição 35 35
Percentual de contribuição 11% 11%
Valor mensal de contribuiç 1.100,00 1.100,00
Contribuição anual 14.300,00 14.300,00
Contribuição em 35 anos 500.500,00 500.500,00
Valor mensal do benefício 5.840,00 10.000,00
Valor em 20 anos 1.518.400,00 2.600.000,00
Déficit 1.017.900,00 2.099.500,00

            Claro: se é assim aqui, não é diferente por aí, ou seja, os sistemas previdenciários dependem de contribuições solidárias, não sendo sustentáveis apenas com as do próprio trabalhador. Por isso, existe a contribuição patronal no caso privado e a contribuição estatal no público, além da Cofins. O dilema das nações é como gerar mais riquezas e contribuições para sustentar o Estado de bem-estar social, melhor patrimônio político do século XX, cujo maior benefício é a previdência. Ninguém quer, nem deve abrir mão dela, mas é crucial sustenta-la sem transferir às futuras gerações uma carga que se negarão a suportar. E não haverá Posto Ipiranga, nem viúva rica, tampouco filha de militar solteira.

            Agora, consideremos o importante fenômeno do aumento de vida da população. Essa é a maior realização do bendito Estado de bem-estar social que não podemos abandonar. Ele é a quintessência do que o Ocidente edificou, preservando liberdades, protegendo a propriedade e atendendo a vontade geral sob a batuta de constituições democráticas e os direitos, insista-se, a aposentadoria o maior deles. Mas não podemos esquecer que se esses direitos são conquistas políticas, os recursos que os asseguram são econômicos e eles vem do trabalho. Então, se devemos preservá-los e manter o aumento da expectativa de vida, simplesmente teremos de trabalhar mais e por mais tempo.

            A moral

            Até aqui, trata-se principalmente de uma questão matemática, mas não é conveniente desprezar o aspecto moral da previdência brasileira. O sistema é perversamente desigual e não se vê um crítico que, em nome dos trabalhadores sem privilégios, denuncie o patrimonialismo corporativista constitucionalmente garantido aos grupos mais organizados. Economista do Senado em 2014, MarcosMendes demonstrava naquele ano que a maioria dos servidores federais estava entre os 1% mais ricos do País e ninguém entre eles estava fora dos 5% mais ricos do País. O mesmo fenômeno acontece na Previdência.

Nessa perspectiva, Mendes revelava o caráter vergonhosamente concentrador da Previdência Social do Brasil, senão, vejamos: o sistema previdenciário brasileiro que alguns defendem em nome dos princípios democráticos de igualdade e justiça social, no ano precedente de 2013 destinavapróximo de 1/3, acreditem, 1/3 para 1% dos beneficiados. Aproximadamente ½, isto é, quase metade foi para 10% dos beneficiados, enquanto os outros 90% – Eu, tu, ele, ela, nós vós, menos eles –nos atracamos para repartir a outra metade, vírgula migalhas. Aqui, a matemática presta um bom serviço à moral e torna tudo tão claro quanto à luz do sol.

Em agosto de 2018, afirmei neste J Mais que “o regime previdenciário nacional é a expressão final, embora não a mais aguda, desse patrimonialismo legalizado. Segundo o economista M. Mendes, em artigo de 27/04/2017 no sítio do Ministério da Fazenda, ‘dados do Banco Mundial mostram que a União, os estados e os municípios, juntos, gastam 4% do PIB com aposentadoria de servidores públicos’. Enquanto isso, ‘o México gasta 0,5%, a Espanha gasta 0,8%, a Coréia 1% e a Grécia, cuja previdência quebrou, gasta 3,5%’. E, para iluminar apenas a casca dessa jabuticaba patrimonialista, lancemos mão do demonstrativo de gastos per capita com as aposentadorias no Brasil. Veja-se:

Despesa Média por Aposentado do Setor Público Federal vs. Valores Mínimo e Máximo dos Benefícios do Regime Geral de Previdência Social em 2016 (R$)

Fonte: Boletim Estatístico de Pessoal, dez 2016, e Previdência Social 

*RGPS = Regime Geral de Previdência Social  .*PS: Exame, 26/01/2017, O valor médio no RGPS foi de:       R$ 1.284”

Nesse contexto imoral de farinha pouca, meu pirão primeiro, as corporações pressionam o Congresso na preservação dos seus interesses, enquanto a imprensa faz o papel de uma oposição que não existe no mundo real. Sua retórica cheia de adjetivos e vazia de conteúdo frustra milhões de brasileiros que gostariam de se ver representados sem ter de compactuar com o corporativismopatrimonialista que endividou a todos nós e às gerações futuras. Seria útil que a oposição falasse disso, presa a fatos e números e não a eleitores articulados. Sua resistência seria levada a sério e a conduziria de volta à religação com a Sociedade, fundamental à democracia.

Ao invés disso, a fina flor da demagogia gasta o tempo no Congresso exibindo sua “valentia” a nichos eleitorais corporativistas, desperdiçando o tempo e omitindo informações valiosas como as do quadro acima.Enquanto isso, sabemos que no ano de 2018, todo o sistema previdenciário brasileiro teve uma receita de aproximadamente R$ 710 bi, incluindo a Cofins, ante uma despesa de R$ 995 bilhões. A diferença percentual entre o que entra e o que sai foi de 40%, ou seja, para cada R$ 1,00 que entrou, saiu R$1,40. Agora veja-se a diferença percentual entre o que entrou e o que saiu para cada uma das três seguintes categorias:

  Entrada Saída Déficit %
RGPS R$ 1,00 R$  1,47 47%
Setor público R$ 1,00 R$  2,50 150%
Militar R$ 1,00 R$10,50 950%
STF R$ 1,00 ? Imagina!

Veja-se que, do ponto de vista percentual, o menor déficit é o dos trabalhadores do setor privado. Há menos de cinco anos, o RGPS ainda era minimamente superavitário, notadamente entre os trabalhadores urbanos. Excluída a previdência rural, ele ainda era superavitário até 2015. Isso significa que o RGPS, que inclui a Cofins, foi bem formulado, ao contrário do que se possa pensar. Entretanto, o que requer sua urgente alteração é exatamente aquilo que o próprio RGPS ajudou a produzir de mais desejável: o rápido aumento da vida dos brasileiros. Até mesmo as excrecências da previdência pública e dos militares passariam batidas, não fosse por esse bônus de vida.

            A situação previdenciária é ainda mais explosiva nos estados e municípios brasileiros, em que não há exceção, seja no caráter deficitário das contas públicas, seja pela posição correspondentemente unânime entre os prefeitos e os governadores. Ali, não há espaço para a demagogia, muito menos para oposição à reforma. O apelo mais emblemático vem do governador da Bahia, Rui Costa, do PT, cada vez mais alinhado à reforma da Previdência, apelando ao bom senso da oposição. Segundo pesquisa de O Globo, de 1992 a 2015, o número de beneficiados cresceu 73% no Brasil. No Rio Grande do Sul, nesses 23 anos, o número simplesmente dobrou. Fazer o que, Alberto Granado?

A solução moral teria de começar pelo sacrifício das Forças Armadas. Se os militares dessem o exemplo, corporações sem vergonha na cara como o judiciário talvez começassem a comprar meias e livros com o próprio salário. O legislativo, por sua vez, poderia sentir-se mais acuado pelas circunstâncias e menos pressionado pelas corporações. Nessa direção, o comportamento militar foi decepcionante e, ao defender sua corporação, o presidente da República não está à altura de um estadista e desperdiça a chance heroica dos que fazem história. Exigir o sacrifício de milhões de trabalhadores, ante uma proposta que reduz a 10% o que a Nação pedia dos militares, é imoral.

A geração que admite a reforma envelhecerá e nãoconseguirá sustentar os privilegiados imorais que impedem o Brasil de crescer e se tornar uma república de fato.Os dados apresentados aqui são insuficientes para a compreensão do problema, mas ele existe e revela o Brasil profundo.A seca aumenta, a agua baixa e o que vai aparecendo é a infinidade de privilégios e penduricalhos das elites dissipadas. Alguns vem da época de D. João VI; outros da Constituição “cidadã”, esse belo arranjo institucional a espalhar migalhas aos pobres e jogar pérolas aos porcos; verdadeiro cheque em branco que começa na urna, chega na aposentadoria integral e termina…, que nada, nunca termina.

Seus portadores: os sucessores dossanguessugas da coroa portuguesaque, com o rabo entre as pernas, fugia do exército napoleônico ovacionado pelo povo. Famintos e saqueados pela própria elite, agradeciam aos invasores que ao menos lhesdavamcomida. Enquanto isso, os velhacos traidores refundavam o modelo de rapina que seus descendentes reproduzem até hoje nos gestos afeminados de juízes, na ladroagem e baixa intelectualidade de governantes, legisladores e comissionadosinúteis. E quando se espera o gesto republicano da corporação que fundou a República, o que aparece? O neto da filha que nunca casou, pedindo que o avô conte uma história de bravura e sacrifício pelo País.

Além da coragem e do sacrifício heroico, mostra a história que a evolução do mundo civilizado dependeu de ilustração das elites e da revolta altruísta do povo. O Brasil dessas elites de terno, toga e farda nunca será um exemplo ao mundo civilizado. Quando, daqui há cem anos, os livros de história mostrarem o que fizeram diante de um povo atordoado, haverá dois enredos possíveis: 1) Santa Catarina já foi um estado federativo do Brasil, país destruído pelo corporativismo de suas elites centralizadoras e patrimonialistas ou 2) o Brasil se rebelou contra as corporações patrimonialistas, se descentralizou e se desenvolveu. Pessimismo e otimismo futurista a parte, o realismo de curto prazo nos avisa: vem mais injustiça por aí.

Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner – Sociólogo

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