Pela conjunção entre a utopia democrática e o realismo político

Pela conjunção entre a utopia democrática e o realismo político

Os primeiros meses do governo Bolsonaro revelam tensões e nos permitem observações não apenas factuais, mas ao que é persistente em nossa cultura e instituições políticas. Uma dessas tensões apresenta um caráter universal e próprio das democracias, não obstante revele uma subsequente tensão de democracias novas em sociedades culturalmente autoritárias como a nossa. A tensão universal é entre a utopia democrática e o realismo político. A tensão subsequente que nos é familiar é entre o reformismo e as demandas por soluções de continuidade. Uma reforma política se insinua.

Governos, Partidos políticos e eleitores agem de forma racional para atingir certos objetivos específicos. O objetivo de governos é exercer o controle sobre os seus partidários, sobre a oposição e sobre os eleitores. Farão tudo o que for possível para se manterem no poder. Com frequência erram ou são vencidos pela astúcia de opositores, o que muitas vezes inclui o “fogo amigo” de seus integrantes na disputa pelo poder. Essa disputa pelo poder é permanente e torna igualmente constante a tensão entre a utopia democrática e o realismo político.

            Com frequência, essa perspectiva da Ciência Política nos ajudaria a compreender como a política realmente funciona, ou seja, a partir da mencionada tensão, que existe aqui, como no Japão, nos EUA, na Alemanha ou em qualquer outra democracia. A utopia sugere que o povo controle os políticos e estes ajam pelo bem público. Enquanto isso, o realismo nos mostra que há sempre uma minoria dominante no poder, procurando inverter a ordem do controle. Essa tensão é natural, porque revela a vontade moral de como a política deveria ser e as escolhas racionaisque mostram como a política é, seja por parte dos políticos, seja por parte dos eleitores.

            Na medida em que nos recusamos a considerar como somos, olhamos para a classe política que nós, direta ou indiretamente elegemos, e os demonizamos. É como se fôssemos os anjos morais vitimados pelos demônios que nos ludibriam na hora do voto, prometendo uma encomenda e entregando outra. Fingimos a nós mesmos, num cínico autoengano, que acreditamos nas suas promessas e lavamos as mãos. É como se a responsabilidade não fosse mais nossa, enquanto as consequências são inevitavelmente nossas. Não precisamos nos sentir culpados por isso. Mas compreendamos que daí vem uma tensão subsequente, particular às democracias novas como a nossa:

            A tensão entre a prudência conservadora do reformismo e o ímpeto autoritário das soluções de continuidade. A prudência conservadora nos faz procurar saber onde estamos errando e como podemos consertar. O ímpeto autoritário nos impele a acabar com tudo que não funciona. É tudo demasiadamente humano, como entre a ira (reacionária ou revolucionária) e a calma (liberal ou conservadora). Exemplos: se a Sociologia incomoda o governo, acaba com a Sociologia. Se o governo é de direita, tomara que morra. Se o Congresso é fisiológico, fecha o Congresso. E fazer o que depois, Nego?

Sejamos objetivos e concordemos com um dos mais sábios estadistas de todos os tempos: Winston Churchill, ao dizer que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas. Se o Congresso tem dificultado a vida de um governo que representa um grande apelo popular, não vamos estragar tudo agora. Nem impeachment, tampouco ditadura. Precisamos compreender a lógica da ação política e admitir que, eleitores e eleitos, somos todos egoístas, embora não exclusivamente. E para que serve admitir isso? Prairmos em frente e cuidar daquilo que por vontade própriageramos, ao invés de abandonar tudo como pais drogados que largam os filhos aos avós.

Para não ficar na abstração, procuremos compreender o problema por partes, como sugeria o filósofo René Descartes. Comecemos com o Congresso, uma instituição fundamental, a mais importante de todas, explicava outro francês, Montesquieu. Há dois aspectos a serem observados e passiveis de reforma: O primeiro é o critério de eleição dos deputados, assim como o de vereadores. Cada vez que a legenda atinge o coeficiente eleitoral (número de votos necessários para eleger um legislador, resultado da divisão do total de votos válidos pelo número de vagas), elege um legislador.

O efeito é que a maioria dos legisladores se elege com votos alheios, isto é, com votos de eleitores que não votaram neles. Nas últimas duas eleições gerais no Brasil, apenas 5% dos congressistas se elegeram sem precisar de votos alheios. Os outros 95% foram eleitos pela legenda, com votos de pessoas que não votaram neles e muitos talvez não votassem neles de jeito nenhum. Em Santa Catarina, por exemplo, nenhum dos eleitos atingiu o coeficiente eleitoral (+ou- 221.500 votos). O mais votado precisou de cerca de 41 mil votos de eleitores que não o escolheram, mas o elegeram. De todo modo, foi o mais votado e, fosse o critério majoritário, também se elegeria.

Diferente é o caso do 16º e último eleito. Ele foi o 38º colocado em votos, e precisou de quase 200 mil votos de eleitores que não o escolheram, mas o elegeram. Com ele, mais cinco se elegeram, sem terem ficado entre os 16 mais votados (dos quais, seis não eleitos). Como se isso não bastasse, saiba-se que os 16 deputados federais foram eleitos por 40% dos votos válidos. Se contados os mais de cinco milhões de eleitores catarinenses, os 16 deputados eleitos pelo atual critério representam a vontade de apenas 36% dos eleitores, pouco mais de 1/3. Isso põe em cheque a legitimidade do sistema.

E o que se faz diante disso? Primeiramente, admitir que não há um modelo perfeito e definitivo para uma Sociedade imperfeita e dinâmica. O modelo atual não é uma maluquice, nem uma jabuticaba. Apenas expressa um tempo que passou: o tempo em que as coligações representavam afinidade ideológica. Tempo em que predominava o conflito entre capital e trabalho, entre democracia e ditadura, entre socialismo e capitalismo. Ali, valia muito votar na legenda. Mas num contexto predominantemente fisiológico em que a oposição passa a ser entre a Sociedade e o Estado, o eleitor não quer votar num representante de seus interesses e eleger um defensor de interesses alheios aos seus.

E há um segundo aspecto. Ele diz respeito a preferências e necessidades microrregionais. Falo por suposição, mas imagino que o eleitor tampouco admite votar e um candidato de sua cidade e eleger o de outra. E qual a alternativa menos imperfeita a esse “defeito” do sistema? Tornar o voto distrital. Embora não tenha aqui um diagnóstico, tampouco um prognóstico, a hipótese matemática é a de que um número maior de eleitoresse veja representado, aumentando a legitimidade do sistema. Não se trata de uma solução ótima, coisa que em política não existe. Trata-se de ajustar o sistema, apertar os parafusos, antes que a engenhoca desmonte.

            Essa é a equação que deveríamos levar em conta quando miramos o cenário político e vemos caos, corrupção, injustiça e, por fim, desanimamos. E ao desprezar a política, escolhemos o dito popular de “deixar o gambá solto no galinheiro”. Assim, ao invés de reagirmos pelo ímpeto autoritário da solução de continuidade, saibamos identificar novas necessidades. Uma boa reforma política deverá buscar o equilíbrio entre a utopia democrática e o realismo político. Qualquer solução de continuidade na política tende a ser um desperdício e um retrocesso, dois luxos que nos custaram duas décadas perdidas nas últimas quatro.

            Chega de tanta irresponsabilidade, autoritarismo e soluções de continuidade. Chega de tantos planos grandiosos que só nos levam a voos de galinha. Precisamos amadurecer, ter um Executivo pautado pelo diálogo e não pelo conflito. E, é claro, temos de pressionar o Congresso a reformar a si próprio, e a pressão das ruas funciona. E precisamos melhorar nossa representatividade no legislativo. A maior lição das democracias amadurecidas é construir instituições que reconheçam, mas inibam nossa natureza egoística e regional, ao invés de nos fazer crer que os seres humanos devam ser moralmente bons sem que haja leis que os obriguem a isso.

Dr. Walter Marcos Knaesel Birkner – Sociólogo.
(vídeo-comentários no Facebook)

CATEGORIA
Compartilhar com

Comentário

Disqus ( )